O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu
Por causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte -
ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim
também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o
pensamento ocidental europeu.
Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:
? A idéia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e
universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por
exemplo, graças aos gregos, no século XVII da nossa era, o filósofo inglês Isaac
Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza.
A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro,
produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como
elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que
a ação e a reação se deram.
Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode
funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é universal, isto é, válida
para todos os corpos em todos os tempos e lugares.
Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme
demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em
Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo
em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do
triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas.
? A idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser
plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos
misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são
conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade,
pode alcançar.
? A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e
normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o
verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idéia de que o nosso pensamento é
lógico ou segue leis lógicas de funcionamento.
Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na
afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que
“Sócrates é um ser humano”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação,
retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”,
estamos retirando do caderno a cor verde).
Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se
alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates
é homem. Logo, Sócrates é mortal ”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal".é verdadeira, porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem
verdadeiras.
? A idéia de que as práticas humanas, isto é, a aç ão moral, a política, as técnicas
e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa
escolha passional (ou emocional) ou racional, de nossas preferências, segundo
certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e
não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas
por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de
serem conhecidas.
A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque
obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser
contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos
homens, em condições determinadas.
Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela
caia natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e
fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários
para a locomoção.
No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse
acontecimento é contingente ou acidental. Por quê? Porque, se o passante não
estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria.
Assim, a queda da
pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas que uma pedra
caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental.
Todavia, é muito diferente a situação das ações humanas. É verdade que é por
uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por
deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao
cinema, por exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os
corpos pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha
voluntária que fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre
Hiroshima.
Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, essa diferença
entre o necessário e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - “tudo
é necessário, temos que nos conformar e nos resignar ” -, mas também evitar a
ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, se alguma força extranatural ou
sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias que podemos
conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos.
A idéia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento
verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem
agem cegamente, mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às
suas ações.
A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a
realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a
fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os
seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e
as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria
razão é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos
humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por
divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por
todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal
conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da
verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada
ou transmitida a todos.
Marilena Chauí filosofa brasileira.- cap.01 do livro Convite a Filosofia - versão pdf.
http://www6.ensp.fiocruz.br/visa/files/Texto_Marilena%20Chaui_Convite%20%20Filosofia.pdfhttp://www6.ensp.fiocruz.br/visa/files/Texto_Marilena%20Chaui_Convite%20%20Filosofia.pdf
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