quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A Filosofia na Idade Média - Alexandre koyré

(..)Acabo de insistir na influência e no papel da herança antiga. É que a filosofia,pelo menos nossa filosofia,está toda ligada à filosofia grega,segue as linhas traçadas pela filosofia grega,adota atitudes previstas por ela.
Seus problemas são sempre os problemas do saber e do ser,levantados pelos gregos.Trata-se sempre da ordem délfica de Sócrates:conhece-te a ti mesmo,responde as perguntas:que sou?e onde estou?isto é,o que significa ser e o que é o mundo?e enfim,o que faço e o que devo fazer neste mundo?
E, de acordo com uma ou outra resposta que dermos a essas perguntas,segundo a atitude que adotarmos diante dessas questões,seremos platônicos ou aristótelicos,ou ainda,plotinianos.A menos,porém,que sejamos estoícos.Ou céticos.
Na filosofia da Idade Média - pois se trata de filosofia -, reencontramos facilmente as atitudes típicas que acabo de mencionar.E todavia,falando de modo geral,a situação da filosofia medieval- e a do filósofo,bem entendido - é bastante diferente da situação da filosofia antiga.
A filosofia medieval - quer se trate de filosofia cristã,judaica ou islêmica - se coloca,com efeito,no interior de uma religião revelada.Com quase uma única exceção,notadamente a do averroísta, o filósofo é crente.Para ele,certas questões estão resolvidas de antemão.Assim,como diz Gilson,de modo muito pertinente,o filósofo antigo pode perguntar-se se há deuses e quantos ele são.na Idade Média - e, graças à idade Média, o mesmo ocorre nos Tempos modernos - não mais se podem levantar semelhantes questões.Sem dúvida,pode-se perguntar se Deus existe.mais exatamente,pode-se perguntar como é possível demonstrar a sua existência.Mas a pluralidade dos deuses não faz mais nenhum sentido:todos sabem que Deus - quer ele exista ou não - só pode ser um único.Além disso,enquanto platão ou Aristóteles formam livremente suas concepções de Deus, o filósofo medieval,de modo geral,sabe que seu Deus é um Deus criador,concepção muito dificil,ou talvez mesmo impossível,de ser assimilada pela filosofia.
Sobre Deus,sobre si mesmo,sobre o mundo,o destino e muitas outras coisas, ofilósofo medieval sabe o que lhe ensina a religião. Sabe,pelo menos,que ela ensina. Diante desse ensino,ele deve tomar partido.Deve,ainda,diante da religião,justificar sua atividade filosófica;e,por outro lado,deve,diante da filosofia,justificar a existência da religião.
Evidentemente,isso cria uma situação extremamente tensa e complicada.muito felizmente,aliás,pois foram essa tensão e essa complicação nas relações entre a filosofia e a religião,entre a razão e a fé,que alimentaram o desenvolvimento filosófico do Ocidente.
E entretanto...apesar dessa situação inteiramente nova,desde que um filósofo - seja judeu,muçulmano ou cristão - aborde o problema central da metafísica, ou seja, o problema do ser e da essência do Ser, ele reencontra em seu Deus Criador o Deus-Bem de Platão, o Deus-Pensamento de Aristóteles, o Deus-Uno de Plotino.
Em geral, a filosofia medieval nos é apresentada como inteiramente dominada pela autoridade de Aristóteles.talvez isso seja verdadeiro,mas apenas no que se refere a um determinado período. E a razão disso é bastante fácil de compreender.
primeiramente, Aristóteles foi o único grego cuja obra completa - pelo menos toda a obra que era conhecida na antiguidade - foi traduzida para o árabe e, mais tarde,para o latim.A obra de platão não mereceu essa honra,tendo sido bem menos conhecida.
Tampouco isso ocorreu po acaso.A obra de Aristóteles forma uma verdadeira enciclopédia do saber humano. Além da medicina e das matemáticas,ali se encontra de tudo:lógica - o que é de importância capital-física,astronomia,metafísica,ciências naturais,psicologia,ética,política...
Não é surpreendente que,na segunda Idade Média,ofuscada e esmagada por essa massa de saber,subjulgada por essa inteligência verdadeiramente excepcional,Aristóteles se tenha tornado o representante da verdade, a culminância e a perfeição da natureza humana, o principe di color che sanno,como dirá dante.O principe dos que sabem.E,sobretudo,dos que ensinam.
pois aristóteles,ademais, é uma pechincha para o professor.Aristóteles ensina e é ensinado;é discutido e comentado.
Também não é surpreendenteque, uma vez introduzido na escola,aí tenha imediatamente deitado raízes(aliás,como autor da lógica,já se achava essa posição desde sempre) e que nenhuma força humana o tenha podido afastá-lo.As proibições e condenações quedaram letra morta.Não se podia desprover os professores de Aristóteles sem lhes dar qualquer coisa em seu lugar.ora,até Descartes,não havia nada,absolutamente nada,a lhes oferecer.
Em compensação,platão se explica mal.A forma dialogal não constitui uma forma escolar.Seu pensamento é sinuoso,dificil de assimilar,e muitas vezes pressupõe um saber científico considerável e,portanto,bem poucoencontradiço.eis porque,talvez,desde o fim da Antiguidade clássica,Platão não mais tenha sido estudado fora da Academia.Onde,aliás,é menos estudado do que interpretado.Vale dizer:transformado.
(...)
Extrato do livro Estudos de história do pensamento científico de Alexandre Koyré

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