terça-feira, 24 de março de 2009

ùltimo conteúdo da unidade - O Pensamento

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 4
O conhecimento

Capítulo 6
O pensamento

Pensando…

Certa vez um grego disse: “O pensamento é o passeio da alma”. Com isso quis dizer que o pensamento é a maneira como nosso espírito parece sair de dentro de si mesmo e percorrer o mundo para conhecê-lo. Assim como no passeio levamos nosso corpo a toda parte, no pensamento levamos nossa alma a toda parte e mais longe do que o corpo, pois a alma não encontra obstáculos físicos para seu caminhar.

O pensamento é essa curiosa atividade na qual saímos de nós mesmos sem sairmos de nosso interior. Por isso, outro filósofo escreveu que pensar é a maneira pela qual sair de si e entrar em si são uma só e mesma coisa. Como um vôo sem sair do lugar.

Em nosso cotidiano usamos as palavras pensar e pensamento em sentidos variados e múltiplos. Podemos chegar a uma pessoa amiga, vê-la silenciosa e dizer-lhe: “Por favor, diga-me seu pensamento, em que você está pensando?”. Com isso, reconhecemos uma atividade solitária, invisível para nós e que precisa ser proferida para ser compartilhada.

Outras vezes, porém, podemos dizer a essa mesma pessoa: “Você pensa que não sei o que você está pensando?”. Agora, damos a entender que dispomos de sinais – alguma coisa que foi dita, um gesto, um olhar, uma expressão fisionômica – que nos permitem “ver” o pensamento de alguém e, portanto, acreditamos que pensar também se traduz em sinais corporais e visíveis. O pensamento é menos solitário e menos secreto do que se poderia supor.

Algumas vezes, chegamos para alguém e indagamos: “Como é, pensou?”, e ouvimos a resposta: “Sim. Vamos fazer o trabalho”. Ou então: “Ainda estou pensando no assunto. Vamos ver depois”. Nesses casos, pensar é tomado por nós como sinônimo de deliberação e de decisão, como algo que resulta numa ação.

Muitas vezes, podem dizer-nos: “Você pensa demais, não faz bem à saúde”. Ou ouvimos a frase: “Ela ficou parada lá na esquina, quieta, pensando, pensando”. Podemos falar: “Por mais que pense nisso não consigo acreditar e, quanto mais penso, menos acredito”. Agora, pensar é visto como preocupação (fazendo mal à saúde), cisma (ficar parada, quieta, cismando), dúvida (quanto mais penso, menos acredito).

Alguns jornais costumam publicar algo que alguém disse com o título: “O pensamento do dia é…”, querendo dizer com isso que uma determinada idéia, definindo algum assunto, foi publicamente anunciada. Essa mesma identificação entre pensamento e idéia pode aparecer quando, por exemplo, um crítico literário escreve: “O livro de Fulano tem alguns bons pensamentos, mas tem outros banais”, classificando idéias em “boas” e “banais”, isto é, umas que dizem algo novo e interessante e outras que repetem lugares-comuns ou frivolidades. Supomos, dessa maneira, que há bons e maus pensamentos, tanto assim que falamos em “pensamento positivo” e em “afastar os maus pensamentos”.

Um professor pode criticar o trabalho de um aluno dizendo-lhe: “Esse trabalho mostra que você não quis pensar”. Aqui, pensar não é só ter idéias, mas também algo que se pode querer ou não querer, algo voluntário e deliberado, uma forma de atenção e concentração. Essa imagem de concentração aparece, por exemplo, quando alguém se zanga e diz: “Querem, por favor, fazer silêncio? Não estão vendo que estou pensando?”.

E já mencionamos o célebre “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum), de Descartes, e a definição do homem como “caniço pensante”, feita por Pascal. Aqui, pensar e pensamento indicam a própria essência da natureza humana.

O que dizem os dicionários

Se procurarmos pensar e pensamento nos dicionários, notaremos que os vários sentidos dados a esses termos recobrem os exemplos que demos do uso dessas palavras em nosso cotidiano e ainda acrescentam alguns outros sentidos.

Pensar, dizem os dicionários, significa: 1. aplicar a atividade do espírito aos elementos fornecidos pelo conhecimento; formar e combinar idéias; julgar, refletir, raciocinar, especular; 2. exercer a inteligência; meditar, ver; 3. exercer o espírito ou a atividade consciente de uma maneira global: sentir, querer, refletir; 4. ter uma opinião, uma convicção; 5. supor, presumir, crer, admitir, suspeitar, achar; 6. esperar, tencionar; 7. preocupar-se; 8. avaliar; 9. cismar.

Pensamento, de acordo com os dicionários, significa: 1. o ato de refletir, meditar ou pensar, ou o processo mental que se concentra em idéias; 2. a atividade de conhecimento ou tendo por objeto o conhecimento; 3. consciência, mente, espírito, entendimento, intelecto, razão; 4. poder de formular idéias e conceitos; 5. faculdade de pensar logicamente, raciocínio, ponto de vista, formulação de um juízo; 6. aquilo que é pensado ou o resultado do ato de pensar: idéia, ponto de vista, opinião, juízo; 7. fantasia, sonho, devaneio, lembrança, recordação, cuidado, preocupação, expectativa; 8. conjunto das idéias ou doutrina de um pensador, de uma sociedade, de um grupo, de uma coletividade.

Assim, no exemplo “Você pensa demais, não é bom para a saúde”, pensar e pensamento significam preocupação; no exemplo “Por mais que pense nisso, não acredito que seja assim”, pensar e pensamento significam cisma e dúvida; no exemplo “Ainda estou pensando no assunto”, pensar e pensamento significam formar uma opinião ou um ponto de vista; no exemplo “Acabem com esse barulho, não estão vendo que estou pensando?”, pensar e pensamento significam atividade mental ou intelectual para formular uma idéia ou um conceito.

Se eu disser: “Penso que ela virá”, estou exprimindo uma expectativa; se disser: “Penso que você sabe disso”, estou exprimindo uma suposição; se disser: “Pensei nele a noite inteira, nem pude dormir”, estou exprimindo preocupação; se disser: “Eu a vi perdida em pensamentos”, quero dizer que vi alguém cismando, fantasiando, imaginando. Mas se eu disser: “A teoria da relatividade resulta do trabalho do pensamento de Einstein”, estou dizendo que o pensamento é uma atividade intelectual de produção de conhecimentos.

Quando procuramos a origem das palavras pensamento e pensar, descobrimos que procedem de um verbo latino, o verbo pendere, que significa: ficar em suspenso, estar ou ficar pendente ou pendurado, suspender, pesar, pagar, examinar, avaliar, ponderar, compensar, recompensar e equilibrar.

Pensar, portanto, é suspender o julgamento (até formar uma idéia ou opinião), pesar (comparar idéias, opiniões, pontos de vista), avaliar (julgar o valor de uma idéia ou opinião, ou seja, se é verdadeira ou falsa, justa ou injusta, adequada ou inadequada), examinar (idéias, opiniões, juízos, pontos de vista), ponderar (isto é, pesar idéias e pontos de vista para escolher um deles), equilibrar (encontrar o meio-termo entre extremos ou entre opostos). Pensare, derivando-se de pendere, caracteriza-se mais como uma atividade sobre idéias, opiniões, juízos e pontos de vista já existentes do que como criação ou produção de uma idéia ou ponto de vista.

Por esse motivo, quando lemos os textos filosóficos antigos e modernos, escritos em latim, notamos que não usam pendere e pensare para dizer pensar, mas empregam dois outros verbos: cogitare e intelligere.

Cogitare significa: considerar atentamente e meditar. Esse verbo vem do outro, agere, que significa: empurrar para diante de si, e também do verbo agitare, que significa: empurrar para frente com força, agitar. Pensar, enquanto cogitare, é colocar diante de si alguma coisa para considerá-la com atenção ou forçar alguma coisa a ficar diante de nós para ser examinada.

O verbo intelligere vem da composição de duas outras palavras: inter, isto é, entre, e legere, que significa: colher, reunir, recolher, escolher e ler (isto é, reunir as letras com os olhos). Por isso, intelligere significa: escolher entre, reunir entre vários, apanhar, aprender, compreender, ler entre, ler dentro de. Donde: conhecer e entender.

Se reunirmos os vários sentidos dos três verbos – pensare, cogitare e intelligere -, veremos que pensar e pensamento sempre significam atividades que exigem atenção: pesar, avaliar, equilibrar, colocar diante de si para considerar, reunir e escolher, colher e recolher. O pensamento é, assim, uma atividade pela qual a consciência ou a inteligência coloca algo diante de si para atentamente considerar, avaliar, pesar, equilibrar, reunir, compreender, escolher, entender e ler por dentro.

Isso explica todos os sentidos que vimos surgir nos dicionários da língua portuguesa e nos exemplos que demos: meditar, concentrar-se, cismar, opinar, ter idéias, compreender as coisas, raciocinar, formular conceitos, ter um ponto de vista, refletir, avaliar, preocupar-se.

O pensamento é a consciência ou a inteligência saindo de si (“passeando”) para ir colhendo, reunindo, recolhendo os dados oferecidos pela experiência, pela percepção, pela imaginação, pela memória, pela linguagem, e voltando a si, para considerá-los atentamente, colocá-los diante de si, observá-los intelectualmente, pesá-los, avaliá-los, retirando deles conclusões, formulando com eles idéias, conceitos, juízos, raciocínios, valores.

O pensamento exprime nossa existência como seres racionais e capazes de conhecimento abstrato e intelectual, e sobretudo manifesta sua própria capacidade para dar a si mesmo leis, normas, regras e princípios para alcançar a verdade de alguma coisa.

Experiências de pensamento

Muitas vezes nos acontece de passarmos horas matutando, cismando, querendo compreender alguma coisa que nos escapa. Fazemos nossas atividades de todo dia, mas parecemos distraídos porque nossa atenção está concentrada noutra parte, naquilo que estamos querendo compreender e não conseguimos. Cansados, paramos de cismar e de dar atenção ao assunto. De repente, com susto e alegria, quase gritamos: “Entendi!”. Sentimos o mesmo que quando completamos um quebra-cabeça, todas as peças em seus devidos lugares, a figura bem visível diante de nós. Tivemos uma experiência de pensamento.

Outras vezes, assistindo a uma aula, lendo um livro científico, fazendo um trabalho no laboratório, resolvendo um problema no computador, vamos acompanhando passo a passo as idéias, os encadeamentos dos raciocínios, as relações de causa e efeito entre certas coisas, as conseqüências de uma afirmação e de uma negação e, finalmente, a conclusão a que chegam a aula, o livro, o trabalho no laboratório ou no computador. Ao término de cada uma dessas atividades temos consciência de que aprendemos alguma coisa que não sabíamos e que fizemos um percurso para conhecê-la e compreendê-la. Tivemos uma experiência de pensamento.

Em certas ocasiões, dialogando com uma outra pessoa, a conversa vai fazendo surgir idéias nas quais eu nunca havia pensado, ou vai fazendo com que eu perceba que algumas idéias, que julgava claras e corretas, não são assim, são confusas e incorretas. Falando com a outra pessoa, vou desenvolvendo idéias que eu nem sabia que tinha e que foram despertadas em mim por alguma coisa que o outro me disse. Clarifico algumas, corrijo outras, abandono outras tantas, descubro novas, tiro conclusões ou me encho de perplexidade. Tive uma experiência de pensamento.

Quando pensamos, pomos em movimento o que nos vem da percepção, da imaginação, da memória; apreendemos o sentido das palavras; encadeamos e articulamos significações, algumas vindas de nossa experiência sensível, outras de nosso raciocínio, outras formadas pelas relações entre imagens, palavras, lembranças e idéias anteriores. O pensamento apreende, compara, separa, analisa, reúne, ordena, sintetiza, conclui, reflete, decifra, interpreta, interroga.

A inteligência

A psicologia costuma definir a inteligência por sua função, considerando-a uma atividade de adaptação ao ambiente, através do estabelecimento de relações entre meios e fins para a solução de um problema ou de uma dificuldade. Essa definição concebe, portanto, a inteligência como uma atividade eminentemente prática e a distingue de duas outras que também possuem finalidade adaptativa e relacionam meios e fins: o instinto e o hábito.

Compartilhamos o instinto e o hábito com os animais. O instinto, por exemplo, nos leva automaticamente a contrair a pupila quando nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatá-la quando estamos na escuridão; leva-nos a afastar rapidamente a mão de uma superfície muito quente que possa queimar-nos. O instinto é inato. Ao contrário, o hábito é adquirido, mas, como o instinto, tende a realizar-se automaticamente. Por exemplo, quem adquire o hábito de dirigir um veículo, muda as marchas, pisa na embreagem, no acelerador ou no freio sem precisar pensar nessas operações; quem aprende a patinar ou a nadar, realiza maquinalmente os gestos necessários, depois de adquiri-los.

Instinto e hábito são formas de comportamento cuja principal característica é serem especializados ou específicos: a abelha sabe fazer a colméia, mas é incapaz de fazer o ninho; o joão-de-barro constrói uma “casa”, mas é incapaz de fazer uma colméia; posso aprender a nadar, mas esse hábito não me faz saber andar de bicicleta.

O instinto e o hábito especializam as funções, os meios e os fins e não possuem flexibilidade para mudá-los ou para adaptar um novo meio para um novo fim, nem para usar meios novos para um fim já existente. A tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o automatismo das respostas aos problemas.

A inteligência difere do instinto e do hábito por sua flexibilidade, pela capacidade de encontrar novos meios para um novo fim, ou de adaptar meios existentes para uma finalidade nova, pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e inventar novas soluções para elas, pela capacidade de escolher entre vários meios possíveis e entre vários fins possíveis. Nesse nível prático, a inteligência é capaz de criar instrumentos, isto é, de dar uma função nova e um sentido novo a coisas já existentes, para que sirvam de meios a novos fins.

Compartilhamos a inteligência prática com alguns animais, especialmente com os chimpanzés. O psicólogo Köhler fez experiências com alguns desses animais e demonstrou que eram capazes de comportamentos inteligentes:

● colocado um chimpanzé numa pequena sala, põe-se a seu lado um certo número de caixotes e prende-se uma banana no teto. Após saltos instintivos (infrutíferos) para a agarrar a banana, o chimpanzé consegue empilhar os caixotes, subir neles e agarrar o alimento;

● colocado um chimpanzé numa pequena sala, nas mesmas circunstâncias anteriores, mas oferecendo bambus em vez de caixotes, o chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros, formando um instrumento para apanhar a banana.

Os gestaltistas explicam o comportamento do chimpanzé mostrando que ele se comporta percebendo um campo perceptivo no qual a banana, os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se relacionam enquanto partes de um todo, de modo que os caixotes e os bambus são percebidos como parte da paisagem e como meios para um fim (agarrar a banana).

O fato de que o chimpanzé percebe um campo perceptivo, e não objetos isolados, é demonstrado quando, no lugar dos bambus, são colocados arames, que o animal enganchará uns nos outros para colher a fruta; ou quando, no lugar dos caixotes, são colocadas mesinhas de tamanhos diferentes, que podem ser empilhadas pelo animal para agarrar a banana.

No entanto, observa-se algo interessante. Depois de comer a banana, o chimpanzé nada faz com os caixotes, os bambus, os arames ou as mesas. Ficam à sua volta como objetos sem sentido. Ao contrário, uma criança nas mesmas circunstâncias, depois de conseguir apanhar um doce, por exemplo, examinará os objetos. Se descobrir que são desmontáveis, ela tentará fazer, com os caixotes e as mesas, uma escada, e com os bambus e os arames, uma rede.

Essa diferença nos comportamentos do chimpanzé e da criança revela que esta última ultrapassa a situação imediata de fome e de uso direto dos objetos e prevê uma situação futura para a qual encontra uma solução, transformando os objetos em instrumentos propriamente ditos.

A criança antecipa uma situação e transforma os dados de uma situação presente, fabricando meios para certos fins que ainda estão ausentes. Ela se lembra da situação passada, espera a situação futura, organiza a situação presente a partir dos dados lembrados, esperados e percebidos, imagina uma situação nova e responde a ela, mesmo que ainda esteja ausente.

A criança se relaciona com o tempo e transforma seu espaço por essa relação temporal. A criança representa seu mundo e atua praticamente sobre ele. Sua inteligência difere, portanto, da do animal.

Leia completo:

http://br.geocities.com/mcrost02/convite_a_filosofia_20.htm

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