sexta-feira, 17 de julho de 2009

TRECHOS DE "A HISTÓRIA DAS MINHAS CALAMIDADES" (1121), DE PEDRO ABELARDO (1079-1142)

Quando ele começou a se corresponder com Heloísa:
Embora nós estivéssemos separados, era possível que nos tornássemos presentes um ao outro por intermédio de cartas, assim como escrever com mais audácia aquelas coisas que geralmente não se dizem de viva voz e, desse modo, estaríamos sempre em agradáveis colóquios.

Quando ele começou suas aulas com Heloísa:
Assim, com a desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da lição, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios do que para os livros e mais freqüentemente o amor se refletia nos olhos do que a lição os dirigia para o texto.
...
E quanto mais essa volúpia me dominava, tanto menos eu podia consagrar-me à filosofia e ocupar-me da escola. Para mim era muito aborrecido ir à escola ou nela permanecer, como era, igualmente, muito difícil para mim ficar em pé, enquanto dedicava as vigílias noturnas ao amor e as horas diurnas ao estudo. As aulas, então, tinham em mim um expositor negligente e indiferente, de tal modo que eu já nada proferia servindo-me do engenho, mas repetia tudo mecanicamente, e já não passava de um repetidor dos meus primeiros achados e, se fosse possível ainda achar algo, seriam versos de amor e não os segredos da filosofia. Depois da separação:
Nenhum de nós se queixava do que acontecera a si mesmo e sim ao outro; nenhum de nós chorava os próprios infortúnios, mas sim os do outro. Entretanto, essa separação dos corpos tornou-se o maior fator de união de nossas almas e, por se lhe negar satisfação, mais ainda se inflamava o nosso amor, e a impressão da vergonha passada despojou-nos mais ainda do pudor, e tanto menos ela se fazia sentir quanto mais a ação nos parecia ainda mais conveniente.

Quando o emascularam:
Quando me inteirei do que acontecia, enviei-a para certa abadia de monjas, perto de Paris, chamada Argenteuil, onde ela outrora, quando menina, fora educada e instruída. Fiz preparar para ela o hábito religioso conveniente à vida monástica e com ele a revesti, exceto o véu. Tendo ouvido o que se passara, o tio dela e os seus parentes ou cúmplices acharam que eu já zombara imensamente deles e que, ao fazê-la monja, eu queria desembaraçar-me dela facilmente. Donde, profundamente indignados e mancomunados contra mim, certa noite, enquanto eu repousava e dormia num quarto retirado da minha residência, tendo corrompido com dinheiro o meu servidor, puniram-me com a vingança mais cruel e vergonhosa, e de que o mundo tomou conhecimento com o maior espanto, isto é, cortaram aquelas partes do meu corpo com as quais eu havia perpetrado a façanha que eles lamentavam.

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Só os Deuses são perfeitos!
"Acredito sinceramente que somos o que pensamos, o que estudamos e o que nos propusemos a ser."