sábado, 21 de julho de 2012

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07/08/2001 - 05h16

O antropólogo da terra da mestiçagem

LILIA MORITZ SCHWARCZ
especial para a Folha de S. Paulo

Jorge Amado nunca quis ser antropólogo, mas sempre o foi sem querer. Suas personagens são pessoas das ruas de Salvador, a Bahia que descreveu foi aquela que o pintor Carybé encontrou em Jubiabá (1935) e se deixou ficar; o mundo que criou na verdade já nasceu criado.

Grande pregador da idéia da mestiçagem, Jorge Amado fez de sua experiência particular um modelo de "ser brasileiro". Oriundo de famílias enriquecidas pelo cacau, o escritor, sem jamais ter deixado o seu universo cultural, foi de encontro a outro. Nesse novo cenário está o cais de Salvador, o candomblé, a capoeira, as festas religiosas, os heróis de cada dia. É assim que em seus livros, sem abandonar o mundo dos coronéis -como em "Menino Grapiúna" (1981), ou "Tereza Batista Cansada da Guerra" (1972)-, Jorge Amado adiciona um novo tempero dado pelo cotidiano mestiço da Bahia.

Fortemente influenciado pela geração da "Academia dos Rebeldes" -esses jovens meninos que com seus 16 anos experimentavam a realidade para entender a literatura-, Jorge Amado acabou sendo porta-voz de uma grande reviravolta. Com efeito, até os anos 30, as elites intelectuais nacionais eram profundamente influenciadas por teorias raciais que viam com descrédito o sangue negro que corria em nossas veias, e ainda mais a mestiçagem.

Pensadores como Silvio Romero, Tobias Barreto e Euclydes da Cunha entendiam o cruzamento racial como fator de desequilíbrio e de degeneração; para não falar de Nina Rodrigues, médico radicado na Bahia, que acabou virando personagem de Jorge Amado, em "Tenda dos Milagres" (1969).

Foi só após os anos 30 que deixamos de pensar que éramos gregos, latinos e espanhóis e passamos -sobretudo a partir da divulgação da obra de Gilberto Freyre- a falar sobre as virtudes e a originalidade da brasilidade.

Tal qual um verdadeiro passe de mágica, de suprema mácula a mestiçagem extremada existente no país passava a representar um modelo de convivência harmoniosa, um exemplo a ser seguido. Mas, se Freyre foi o "pai da idéia", Jorge Amado foi seu grande artista. Em seus livros, tudo parece ter resultado da mistura: as culturas, as religiões, os sangues das raças.

Quase como um panfleto contra o preconceito, Amado vai expondo as armas contra o racismo: a mistura de raças e de credos. Mais eficientes do que um bom manual, seus romances ao mesmo tempo em que prendem o leitor na trama o transportam para o polêmico terreno do sincretismo religioso, que o autor tanto advoga. É então que o Oba de Xangô de Jorge Amado mistura materialismo com fetichismo e revela que o encontro de credos pode levar ao surgimento de uma nova religião.

Em "Tenda dos Milagres" (1969), por exemplo, Jorge Amado apresenta não só a violência dos brancos, diante desses rituais de origem africana, como oferece o ingresso para um outro mundo, onde a mistura não é só de raças, mas também de religiões.

Mas ele é mesmo o grande divulgador da mestiçagem. Em suas obras ela é tão evidente que muitas vezes não precisa ser afirmada. Todos sabem que Tereza Batista é mulata, assim como Tieta, e que Dona Flor é cabo-verde (essa mistura particular de branco com negro e índio), mas não é o autor que usa os termos como definição. No seu universo parecem não caber classificações que descrevem a cor, mas não a relação; que delatam exclusivamente a violência sem falar da convivência.

O que Jorge etnógrafo encontrou na Bahia foi um mundo complicado de ser afirmado, mas fácil de ser reconhecido. Uma certa brasilidade que, se não pode ser entendida de forma absoluta, ajuda a pensar que há uma determinada especificidade na nossa convivência racial e mesmo no tipo de preconceito aqui existente.

Convivência não quer dizer ausência de conflito; mistura não é sinônimo de falta de hierarquia. Ao contrário, esse universo complexo está todo lá: a pobreza, os coronéis e seus jagunços, a boemia, a religião que mistura santos católicos com orixás africanos.

Assim como é certo que a mistura, seja cultural, religiosa ou biológica, ainda não se realizou entre nós de forma harmoniosa, é evidente que Amado -agora xamã- nos confunde com o mistério da literatura. Quem embarcar nessa viagem terá dificuldade em dizer quando começa o mito e se apaga a realidade ou quando a vida real vira metáfora. Na verdade, pouco importa.

Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamento de antropologia da USP e autora de, entre outros, "As Barbas do Imperador: Dom Pedro 2º, um Monarca nos Trópicos" (Companhia das Letras, 1998)

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