sábado, 31 de agosto de 2013

A diversidade e o multiculturalismo fazem bem ao Brasil e à humanidada por Marcelo Paixão


RAÇA, ENQUANTO realidade biológica, inexiste. Isso implica que o ser humano, portador de diferentes formas físicas e legados culturais ancestrais, forma uma única espécie. Ou seja, tanto faz tanto fez que uma pessoa tenha a pele clara ou escura, os cabelos lisos ou crespos, narizes, lábios e demais caracteres de um jeito ou de outro: essas diferenças não tornam ninguém mais apto ou capaz para a realização de tudo de bom ou de mau que um coração humano comporta. Contudo, essa constatação informa pouco o que se esconde por trás do tema da diversidade e do multiculturalismo. Pois se raça não existe, por que então debater sobre relações raciais? 
O fato é que a realidade biológica não pode ser utilizada como único vetor para o entendimento do problema das relações entre seres humanos de aparências diferentes. Quando falamos em relações raciais, não estamos apontando um termo que diga respeito à natureza, mas sim aos modos pelos quais os seres humanos, de diferentes partes do mundo, estabeleceram entre si ao longo da história, relações de dominação econômica, política, cultural e simbólica uns sobre os outros. Assim, se raça não existe, o mesmo não se pode dizer do racismo e do seu primo irmão, o etnocentrismo. O racismo não somente existe como forjou ideologias que, em primeira e última instância, legitimaram múltiplos modos extremamente perversos de exploração (e a escravidão é apenas a sua forma mais estúpida, mas não única), humilhação e violência contra povos de todo o mundo. 
O termo “relações raciais” se funda na constatação da existência de uma efetiva relação de sujeição de seres humanos, ou povos, sobre outros seres humanos, ou outros povos, que, baseados nas aparências físicas e muitas vezes, em atributos culturais ancestrais, acaba justificando ideologicamente seu projeto de dominação. Que tais fundamentações fantasiosas da realidade se forjem em mitos teológicos – como no período da Idade Média e Moderna – ou em pretensos argumentos científicos, que teve seus dias de glória nos tempos de constituição do Imperialismo, mas que ainda hoje possui muitos adeptos – não muda a natureza da questão. Toda forma de discriminação racial, xenofobia, intolerância e preconceito de raça ou cor ajudam a legitimar a coisificação de semelhantes, abrindo caminho para sua transformação em um ente a ser subjugado e explorado. 
Racismo e discriminação 
No Brasil existem não poucas vozes que supõem que tenhamos superado este tipo de mazela. Muitas vezes tais compreensões julgam que, pelo fato de nosso povo ser essencialmente mestiço – coisa que de fato o é -, nos torne imune às mazelas do preconceito racial ou da discriminação. Outros tantos avançam ainda mais, supondo ser nossa pátria o paraíso da democracia racial. Todavia, entre os mitos e a realidade efetiva existe um amplo hiato. Descortiná-la não é apenas uma tarefa imprescindível aos que mais sofrem os dramas do racismo à brasileira, que são os afrodescendentes e indígenas. Na verdade, o combate ao racismo e à discriminação racial é uma importante missão para o aprofundamento da democracia em nosso país. Mas, por quê? 
O fato é que, se é verdade que no Brasil somos todos mestiços, não menos verdade é que as pessoas seguem sendo preteridas por conta de suas aparências físicas. Assim, por mais que a realidade biologicamente mestiçada crie formas próprias de relacionamentos raciais diferentes do que ocorre em outros países, onde tal problema se apresenta mais abertamente, não há dúvida de que os portadores das peles mais escuras e de traços faciais mais próximos de um africano sub-sahariano padrão acabarão encontrando maiores dificuldades para ter acesso não somente às oportunidades de mobilidade social ascendente, mas também aos direitos mais elementares. Isso é gerado pela incorporação imaginária de que o tipo físico e a cultura européia formam o objeto a ser admirado e respeitado, sendo os demais tipos e legados ancestrais, mormente quando remetidos aos negros e aos indígenas, tidos como atrasados, rudes e primitivos. 
Triste realidade 
Atualmente, uma em cada cinco mulheres negras ocupada no mercado de trabalho o faz sob a condição de empregada doméstica. A taxa de homicídios de jovens negros é superior a 130 por cem mil habitantes. O percentual de empregadores negros não chega a 25% do número total de empregadores, sendo que, no interior da categoria dos empregadores que empregam acima de cinco empregados os afrodescendentes mal chegam a 10%. Os salários dos negros é metade dos brancos, e as mulheres negras costumam receber um terço dos rendimentos de um homem branco. O número de parlamentares de peles escuras ou de traços notoriamente indígenas é irrisório em nosso Congresso Nacional e nos diversos Parlamentos locais. Esses indicadores não refletem somente que os negros são pobres materialmente, espelhando tão-somente uma discriminação social. Refletem, sim, que a pobreza da população negra está intimamente reportada a um modelo de relacionamentos interraciais, e, por conseguinte, sociais, que naturaliza e reforça permanentemente o baixo papel exercido pelas pessoas deste grupo em nossa sociedade em termos econômicos, políticos, sociais, estéticos e culturais. 
Justiça e igualdade 
A luta pela superação da discriminação racial e de todos os seus elementos motivadores e derivados torna-se imprescindível para o campo democrático de todo mundo contemporâneo, porque aponta para a valorização daquilo que o ser humano possui de mais especial: sua variedade física, de sotaques, de formas, olhares, sabores, musicalidades e culturas. Força de nossa espécie humana, e cuja perda não poderá ser entendida senão como trágica e insana. Em nossa triste nação, por apontar para os mais nobres e profundos sonhos de liberdade forjados ao longo de nossa história – efetivamente iniciados no último suspiro do primeiro índio abatido; nos lamentos contidos nos porões do primeiro tumbeiro a atracar em nossas terras. Dessa capacidade de reviver permanentemente esses sonhos de justiça e dignidade – posto que, conquanto reinventadas, as injustiças daqueles dias chegaram aos nossos – desdobra-se nossa capacidade de tornamos real, um dia que sabe?, a realização de uma utopia chamada Brasil. 
Marcelo Paixão é professor do Instituto de Economia da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatística das Relações Raciais (LAESER) 
Fonte: Brasil De Fato

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