sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O Problema do Mal: Uma introdução


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“Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos Deus?” (Epicuro)

Problemas filosóficos, mesmo que pareçam para alguns como problemas difíceis, com uma roupagem de discussão sofisticada e intelectual, são os problemas mais naturais do ser humano. Não consigo conceber um ser capaz de pensamentos complexos que não faça perguntas como: Há algum sentido para a vida? Por que há algo, e não nada? O que é o certo a se fazer? Uma explicação bastante razoável que temos para a criação das primeiras religiões é que os homens tentaram responder a perguntas filosóficas como essas e o conceito dedivindade, nas suas mais diversas formas, era uma excelente resposta para tais perguntas. Desta forma, durante milênios, as mais diversas civilizações e culturas moldaram o conceito de divindade como hipótese explicativa para os mais diversos fenômenos que não conseguíamos explicar. Todas elas advogavam que a sua, e apenas a sua, eram a verdadeira religião, ou seja, apenas eles tinham um conjunto de crenças e hipóteses capazes de explicar com sucesso a realidade. Qual está correta, ou mesmo se alguma delas está correta, não é meu objetivo aqui.
Deus
Representação de Deus da tradição judaico-cristão.
Irei centrar a discussão em uma divindade específica, de uma tradição religiosa específica entre diversas outras, nomeadamente, o Deus da tradição judaico-cristã. Não pretendo tomar uma posição se essa divindade existe ou não, tampouco se o conjunto de crenças e hipóteses religiosas dessa tradição consegue explicar corretamente a realidade. Tendo delimitado o objeto de análise desse texto, o conceito de Deus da tradição judaico-cristã, apresentarei um famoso problema em filosofia da religião, o chamado “problema do mal”.
Diferente do que parece, o chamado “problema do mal” não é apenas um problema, mas pode ser apresentado de formas diferentes. A primeira coisa que precisamos deixar claro é: Qual divindade estamos tratando? Como já dito acima, vamos nos focar no Deus judaico-cristão. O segundo ponto que devemos esclarecer: Quais são os atributos divinos dessa entidade que são postas em causa pelo problema, e como devemos entendê-los? No caso do Deus da tradição judaico-cristã (que adiante irei chamar apernas de “Deus”) os atributos são a onipotênciaonisciência esuma bondade. O terceiro passo é entendermos que tipo de mal vamos tratar. Há três distinções de males, nomeadamente, mal natural ou moral, mal gratuito ou justificado e mal comum ou hediondo. Os dois primeiros pares de conceitos, mal moral e mal natural, são essenciais para expormos corretamente o problema, pois iremos ver que cada tipo de mal que iremos tratar irá alterar como o problema será apresentado (iremos nos centrar nele, mas apresentaremos os outros também). Por fim, no quarto passo iremos analisar três diferentes estruturas que o problema pode ser apresentado. O problema pode ser apresentado como um problema lógico, ou um problema epistêmico (evidencial) ou mesmo um problema existencial. Nossa análise ficará mais restrita aos dois primeiro problemas, o lógico e o evidencial. Já o problema existencial não iremos expor, pois não parece ser um problema substancial ao teísmo.
Como esse texto pretende ser uma exposição direta e introdutória do problema do mal, tentarei ser direto também na introdução explicativa dos conceitos necessários para discutir o problema. Assim, deixo claro que irei apresentar esses conceitos (viz., onipotência, onisciência, suma bondade e as três distinções do mal) sem fazer uma explicação minuciosa de cada um deles. Apresentarei esses conceitos conforme são geralmente entendidos contemporaneamente, mas como quase não existe consenso em filosofia, esses conceitos podem ser entendidos de modos diferentes e eles também têm problemas a parte, mas não iremos tratá-los aqui. Outro aviso é que tentarei achar um equilíbrio em ser direto, pouco prolixo, e fazer uma apresentação clara. No entanto, podem haver certos conceitos filosóficos clássicos que infelizmente não terei como explicar aqui. Vamos então começar analisando os três atributos divinos relevantes para tratarmos o problema: a onipotência, onisciência e suma bondade.
1.1  A onipotência.
Como seria Sócrates como pantufas?!
Como seria Sócrates como pantufas?!
De acordo com a abordagem padrão da onipotência, aceita tanto por ateístas como também para teístas, a onipotência divina é entendida como a capacidade de Deus poder fazertudo. No entanto, esse “tudo” tem certas limitações. Sua onipotência seria restringida pelas leis da lógica, de modo que Deus não poderia efetivar contradições. Outra restrição a seu poder é a modalidade metafísica. Deus não poderia retirar uma propriedade essencial de algo e, ainda assim, esse algo existir. Por exemplo, se Sócrates instancia a propriedade de ser humano essencialmente, então Deus não poderia transformá-lo em algo que não é um ser humano (e.g., em uma pantufa) e ainda assim Sócrates existir. Assim, quando dizemos que que a onipotência é “a capacidade de Deus fazer tudo”, queremos dizer que é a capacidade de Deus fazer tudo que é possível fazer. Impossibilidades lógicas e metafísicas, nesse caso, não são possíveis de serem feitas.
Devemos contrastar as restrições lógicas e metafísicas da, por exemplo, natural. Entendemos a restrição da lógica como Deus podendo fazer tudo o que é logicamente possível, entendendo logicamente possível como tudo àquilo que não entre em conflito com as leis da lógica. E a restrição metafísica como Deus podendo fazer tudo o que é metafisicamente possível, como tudo àquilo que não entre em conflito com as leis metafísicas. No entanto, a possibilidade natural se distingue neste caso. Deus poderia fazer algo que não é naturalmente possível (i.e., algo que entre em conflito com as leis da natureza). Ou seja, Deus pode violar uma lei da natureza, mas não uma lei metafísica ou lógica (isso aconteceria, por exemplo, quando Deus efetiva um milagre).
1.2 A onisciência.
O que significa dizer que Deus é onisciente? A onisciência é a tese de que um agente sabe tudo. Isto é, para toda proposição verdadeira e conhecível esse agente a conhece. Devemos notar que esta caracterização de onisciência não implica a infalibilidade. A infalibilidade é a tese de que toda crença de um agente é verdadeira. A onisciência tal como apresentada não tem essa implicação, uma vez que de conhecer todas as proposições verdadeiras, isso não significa que o agente não poderia ter crenças em proposições falsas. O que aconteceria neste caso é que o agente tem um conjunto de crenças inconsistentes, mas de acordo com certas teorias da epistemologia contemporânea isso não é um problema. Aparentemente, nós temos crenças contraditórias em nosso conjunto de crenças. Mas, como Deus tem de ser o mais próximo da perfeição possível, vamos assumir que Deus é também infalível. Desse modo, a onisciência divina pode ser definida assim: para toda proposição verdadeira p, Deus sabe que e não acredita em não-p. Ou seja, Deus conhece toda proposição verdadeira e não acredita em nenhuma proposição falsa.
1.3 A suma bondade.
O que significa dizer que Deus é sumamente bom? A propriedade de ser sumamente bom, de acordo com o teísmo estrito, é outra propriedade instanciada essencialmente por Deus. Essa propriedade é entendida como a capacidade divina de cometer apenas ações moralmente permissíveis. Em outros termos, nenhuma ação de Deus é moralmente incorreta, e sendo esta uma propriedade essencial divina, então Deus não poderia existir e cometer uma ação má. A suma bondade implicaria assim na perfeição moral. Do mesmo modo, se uma ação é imoral, então o agente da ação teria alguma imperfeição de caráter. Deus é um agente cujo caráter moral é perfeito. Logo, nenhuma de suas ações será imoral.
Entendendo qual a natureza divina tratada pelo problema do mal, precisamos agora fazer uma caracterização do que entendemos por mal. Devemos notar que não iremos oferecer uma definição explícita do que é um mal, mas apenas fazer distinções que sejam uteis para trabalhar com o problema. Compreender a natureza metafísica do mal é um trabalho interessante, mas que não se faz necessário aqui. As distinções mais comuns são entre o mal moral e o mal natural, entre o mal gratuito e o mal justificável, e entre o mal comum e o mal hediondo.
Fuzilamentos durante a 2ª guerra mundial: exemplo de mal moral.
Fuzilamentos durante a 2ª guerra mundial: exemplo de mal moral.
2. 1 Mal moral e mal natural. 
A primeira distinção, entre o mal natural e o moral, está relacionada à origem do mal. Um mal é caracterizado como moral quando sua origem é um agente moral livre. Todavia, podemos oferecer uma definição implícita de males morais apresentado exemplos. Para isso basta pensarmos em diversos eventos que consideramos maus e cuja sua origem é o homem (uma vez entendendo o ser humano como um agente moral livre). Alguns exemplos são o holocausto, apartheid, massacre da noite de São Bartolomeu, etc.
Vítimas do terremoto de Bangladesh: exemplo de mal natural.
Vítimas do terremoto de Bangladesh: exemplo de mal natural.
Em contraste com os males morais estão os males naturais, i.e., eventos cujas consequências são consideradas por nós como más, mas que não são causados pelas ações de um agente moral livre. Exemplos de males naturais é a peste negra, furação Katrina, ciclone de Bhola em 1970, tsunami em Myanmar de 2008, etc.
2.2 Mal gratuito e mal justificado.
A segunda distinção, entre o mal gratuito e o mal justificável, diz acerca da justificação do mal. Um mal é gratuito quando sua ocorrência não tem nenhuma razão aparente que o justifique. Por exemplo, pensemos nas mortes decorrentes de Chernobyl. Não há nenhuma razão aparente em virtude de todo o mal causado pelo acidente ocorrido naquela usina.
Um tratamento dentário doloroso: um bom exemplo de mal justificável.
Um tratamento dentário doloroso: um bom exemplo de mal justificável.
Em contra partida, um mal é justificável em relação ao qual sabemos ou, pelo menos, concebemos alguma razão aparente para sua ocorrência. Como aponta o professor Sérgio Miranda, “Essa razão tem de ser entendida com algum bem intimamente conectado à ocorrência do mal tal que, sem o mal, o bem também não seria realizado. Portanto, o mal é visto como uma condição necessária para haver o bem em questão”. Pensemos, por exemplo, em um tratamento dentário muito doloroso. Aparentemente esse é um mal justificado, uma vez que ele parece ser necessário para um bem maior, que é ter dentes saudáveis.
2.3 Mal comum e mal hediondo.
A terceira distinção, entre o mal comum e mal hediondo, aponta para a intensidade do mal. Os males comuns são aqueles que acontecem com tal intensidade que não o consideramos como relevantes para a nossa existência. Isto é, pensemos no mal causado por uma unha encravada. Ainda que seja dolorido, não consideramos que esse mal seja suficiente para influenciar na decisão de continuarmos ou não a viver. Parece que sua intensidade é tal que não nos põe em dúvida acerca da nossa existência. Um mal hediondo, por sua vez, é uma mal que não acontece com frequência. Todavia, sua intensidade é tal que chegamos a duvidar se vale a pena continuarmos a nossa existência nessas condições. Um exemplo de um mal hediondo é a tortura intensa. Em certas condições de tortura, o indivíduo pode chegar a desejar a morte, visto que continuar a sua existência naquelas condições seria pior do que cessar o mal através de sua própria morte.
Tendo em vista as descrições oferecidas pelo teísmo estrito para a existência de Deus, como também pelas distinções feitas acerca da natureza do mal, podemos expor os modos distintos pelos quais o problema do mal pode ser tratado.
3.1 O problema lógico do mal.
O problema lógico tenta mostrar através de argumentos dedutivamente válidos que, se Deus existe e instancia as propriedades descritas pelo teísmo estrito, e há males no mundo, então obteremos uma contradição. Uma contradição é uma proposição que é impossível de ser verdadeira, i.e., não é verdadeira em nenhuma circunstância possível. Se em um argumento dedutivamente válido concluímos uma contradição, pelas regras de inferência da lógica clássica, segue-se que uma das premissas é falsa. Temos as premissas:
(1)   Deus existe.
(2)   Deus instancia as propriedades descritas pelo teísmo estrito.
(3)   Há males no mundo.
Alvin Plantinga: um senhor simpático.
Alvin Plantinga: um senhor simpático.
O problema reside, segundo o ateísmo, que podemos inferir dessas premissas uma contradição. O filósofo Alvin Plantinga, contudo, argumenta que apenas com essas três premissas não somos capazes de derivar uma contradição. Segundo ele, deve-se adicionar um premissa adicional que permita inferir que de (1) e (2) implica, diretamente, na negação de (3). Além disso, segundo ele, essa premissa adicional deve ser “ou necessariamente verdadeira, ou essencial ao teísmo, ou uma consequência lógica de tais proposições”. Alguns filósofos enfrentaram o desafio proposto por Plantinga, apresentando assim premissas adicionais que tentam satisfazer as condições impostas por Plantinga e que gerariam a contradição esperada.
Aceitando que as premissas adicionais permitam de fato gerar a contradição entre a tese teísta e a existência de males no mundo, esse seria um grande problema a ser enfrentado pelos teístas. Negar a premissa (3) parece implausível e negar (1) iria contra a tese básica do teísmo. Já negar (2) é assumir que Deus não tem alguma das propriedades anteriormente descritas como essenciais a Ele, i.e., ou Deus não é onipotente, ou não é onisciência ou não é sumamente bom. Qualquer uma dessas opções deixa os teístas em uma má situação. A solução viável ao teísta, deste modo, é atacar a premissa adicional. Todavia, diante deste problema um ateísta prefere apenas negar a premissa (1), afirmando que Deus não existe.
Como fizemos a distinção entre mal natural e moral, a diferença entre o problema lógico do mal natural para o problema lógico do mal moral se reside na forma como iremos entender o mal na premissa (3). Se a premissa (3) afirma a existência do mal natural, então um teísta (para tentar escapar do problema) terá que mostrar que, ainda que (1) e (2) sejam verdadeiras, disso não se seque que (3) deva ser falsa. Ou seja, ainda que Deus exista e instancie as propriedades descritas, isso não se segue que não deva existir males naturais no mundo. Ao sustentar essa tese um teísta ataca a premissa adicional, à custa de oferecer uma explicação de como há males naturais ou então por que temos a impressão errada da existência desse tipo de mal.
Se entendermos a premissa (3) como afirmando a existência do mal moral, i.e., a existência de males causados por agente morais, então um teísta (para tentar escapar do problema) terá que mostrar que ainda que Deus exista e instancie as propriedades descritas, isso não se segue que não haverá males morais. Novamente, ao sustentar essa tese o teísta ataca a premissa adicional, às custas de oferecer uma explicação para a existência de males morais.
3.2 O problema evidencial do mal.
O problema evidencial, basicamente, tenta concluir a provável inexistência divina a partir de argumentos indutivos ou abdutivos. Ainda que seja logicamente possível Deus e os males coexistirem, a existência abundante de males no mundo torna improvável Sua existência, a não ser que haja razões suficientes para a existência abundante de males. Em outros termos, a melhor explicação para a existência de males no mundo é que Deus não existe, visto que não parece haver, prima facie, razões suficientes para a existência tão abundante de males no mundo. Argumentos evidenciários, como o nome já descreve, partem de evidências e oferecem conclusões baseadas em induções ou probabilidades. Deste modo, argumentos assim perdem sua força por não serem dedutivos, i.e., não terem conclusões que seriam impossíveis de serem falsas uma vez que as premissas sejam todas verdadeiras.
Uma consequência do problema evidencial do mal, de acordo com o ateísmo, é que a partir do momento que se assume que a ausência de razões suficientes para a existência abundante de males no mundo serve como indício contra a hipótese teísta, e uma vez que não temos indícios a favor da proposição de que Deus existe, a crença teísta é irracional. Essa conclusão seria sustentada através de um princípio epistêmico sobre racionalidade, chamado “desafio indiciarista”:
  • É irracional ou irrazoável termos crenças na ausência de indícios ou razões suficientes.
De acordo com o ateísta, esse princípio pode ser aplicado ao problema quanto a aceitação da crença teísta. Não temos indícios quanto a existência de Deus, tanto quanto não temos razões suficientes para a abundante existência de males no mundo. Sendo assim, não temos justificativas razoáveis ou racionais para aceitarmos a crença teísta. O teísmo, para escapar desta formulação do problema do mal, deverá então advogar para a existência de uma razão suficiente para a existência de males no mundo, tanto quanto argumentar a razoabilidade da hipótese teísta.
Tal como no problema lógico do mal, a distinção entre males morais e males naturais também altera como o problema evidencial é apresentado. O problema evidencial do mal moral advoga que a existência de males morais serve de indício contra a existência de Deus. O teísta, para escapar desse problema, deverá apresentar razões suficientes para a existência de males morais. Já o problema evidencial do mal natural defende que a existência de males naturais no mundo, como furacões devastadores, terremotos, queimadas ocasionadas pela seca, tsunamis e certas doenças são fortes evidencias contra a existência de Deus. Novamente, para escapar do problema, o teísta deverá apresentar razões do por que existem tais males, mostrando que Deus não poderia fazer nada para impedi-los.
4. Para concluir.
Antologia de textos sobre o problema do mal
Antologia de textos sobre o problema do mal
Como disse anteriormente, não irei fazer uma análise do problema existencial do mal. Esse problema afirma, basicamente, que a experiência pessoal do mal nos fornece um tipo de sensação que nos faz questionar a existência de Deus, de modo que a experiência pessoal de Deus é abandonada. Não me parece relevante discutir esse problema aqui.
O problema do mal (ou melhor, os problemas dos males) foi extensamente tratado na história da filosofia, e até hoje é uma discussão que volta no itinerário dos debates filosóficos contemporâneos. Tanto a reformulação desses problemas, como várias respostas foram oferecidas. Algumas parecem funcionar, outra já foram descartadas. Cabe a vocês, então, procurar por essas respostas. O que tentei fazer aqui foi levar o debate até vocês, tentando deixá-lo de modo mais claro e acessível. Se quiser saber mais sobre o problema do mal, indico aqui uma antologia de textos muito boa sobre o tema, organizada e traduzida pelo filósofo Sérgio Miranda: O Problema do Mal: Uma Antologia de Textos Filosóficos.
http://universoracionalista.org/o-problema-do-mal-uma-introducao/

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