segunda-feira, 13 de março de 2017

“A revolução feminina é inédita”, diz filósofo criador da “terceira mulher”

Gilles Lipovetsky vê a mulher contemporânea em constante mutação, se reinventando diante do machismo e com um longo caminho a percorrer

Ano de 1960, início da segunda onda feminista. É nessa época que filósofo francês Gilles Lipovetsky coloca o surgimento da “terceira mulher”: aquela que é dona de seu destino, de seu corpo e de sua posição social. 
O conceito, criado por Gilles em 1997, traduz esta nova mulher -- uma mulher que deixou de ser uma invenção do homem, está em constante mutação e se reinventando diante do machismo, ainda em vigor na sociedade contemporânea.

A terceira mulher deixou de ser definida como segundo sexo ou 'mulher-objeto' e é entendida em relação ao outro e ao mundo

Lipovetsky explica que Eva foi a “primeira mulher”, pecadora e diabolizada na tradição judaico-cristã. Era ela a responsável pela infelicidade do homem. Já na Idade Média, a visão do sexo feminino é oposta à anterior. Uma espécie de anjo que acalenta e seduz com sua beleza o macho dominante.
Foram séculos de opressão feminina que marcaram a “mulher-objeto” e até hoje deixam resquícios. “São estes fantasmas de suas antecessoras, de mulheres que carregam a culpa consigo, que as assombram”, diz Lipovetsky ao Delas, citando sua obra “A Terceira Mulher – Permanência e revolução do feminino” (Companhia das Letras).
Só a partir da emancipação foi possível afugentar alguns desses fantasmas e dar espaço “à mulher-sujeito”, como o filósofo define. “Nos últimos cinquenta anos a condição feminina mudou mais do que a soma dos últimos milênios”, observa o autor. “A revolução feminina é inédita. A contracepção e o engajamento profissional da mulher jamais existiram. E não se trata de uma questão de sua natureza, foi uma construção social”.

Pode ser que o progresso seja muito rápido, mas ainda não vejo a quarta mulher
Raízes paternalistas
Não é novidade que a mulher moderna tem sua faceta malabarista, de tentar conciliar duas, às vezes três jornadas. Especialmente no Brasil, onde se vive uma ditadura de padrões estéticos, salienta o filósofo, a “terceira mulher” tenta levar a vida pessoal e a carreira lado a lado, sem descuidar da beleza.
No entanto, mesmo desempenhando muito bem as funções no campo profissional, seu salário ainda está aquém ao dos homens. Portanto, houve o progresso histórico e social, mas as raízes paternalistas ainda estão bem fortes. “É evidente que os homens têm tido maior participação na educação dos filhos, mas os afazeres do lar ainda são responsabilidade delas ”, afirma Lipovetsky. 
Se na política as coisas estão mudando com a entrada de mais mulheres no poder – como acontece no Brasil, na Argentina e em breve no Chile – ainda são poucas mulheres que ocupam cargos de liderança no mundo corporativo. “Chamo isso de teto de vidro: quanto mais alta a hierarquia, menos mulheres presentes”.
O papel secundário da mulher no contexto hierárquico tem duas leituras para o autor. Uma é a persistência do machismo, que mantém os homens no poder e impede a ascensão das mulheres. A segunda, e consequência da primeira, são os resquícios de séculos de submissão, da qual ela se libertou há pouco tempo.

Se na política as coisas estão mudando com a entrada de mais mulheres no poder – como acontece no Brasil, na Argentina e em breve no Chile – ainda são poucas mulheres que ocupam cargos de liderança no mundo corporativo. “Chamo isso de teto de vidro: quanto mais alta a hierarquia, menos mulheres presentes”.
O papel secundário da mulher no contexto hierárquico tem duas leituras para o autor. Uma é a persistência do machismo, que mantém os homens no poder e impede a ascensão das mulheres. A segunda, e consequência da primeira, são os resquícios de séculos de submissão, da qual ela se libertou há pouco tempo.
Quarta mulher
Para o filósofo francês, ainda não há sinais do surgimento da quarta mulher no contexto histórico. “Pode ser que o progresso seja muito rápido, mas ainda não há um grande fenômeno em vista”.
A peça “A Mãe Coragem e seus Filhos”, escrita por Bertolt Brecht em 1939, ainda é muito atual. O apego pela carroça da personagem principal pode ser relacionado com o divórcio e o apego pelo dinheiro.

Na obra, ela deixa tudo para trás, inclusive os filhos, e se agarra ao seu comércio para sobreviver. “Há pais que lutam pela guarda de seus filhos, mas é mais comum vermos o homem sendo irresponsável. Eles quase não veem os filhos e não pagam pensão”, lamenta ele, referindo-se a este modelo de pai como a personificação da “Mãe Coragem”, que abandona seus rebentos em busca de seu bel-prazer.
É fato que houve muito progresso desde a segunda metade do século passado. A mulher deixou de ser definida como segundo sexo, ou “mulher-objeto”, ela percebe-se e é entendida em relação ao outro e ao mundo, mas ainda há uma longa estrada a percorrer. E não é apenas igualdade de condições em relação aos homens que a mulher do futuro quer, e sim autonomia, conquistar seu espaço de vez.

Gilles Lipovetsky sobre o conceito de teto de vidro: 'Quanto mais alta a hierarquia, menos mulheres presentes'


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