quarta-feira, 11 de julho de 2012

Quem disse que compreender a amizade não foi interessante para alguns filosofos


ARISTÓTELES. ÉTICA A NICÔMACO.
LIVRO VIII
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Depois do que dissemos, cumpre-nos agora uma discussão acerca da natureza da amizade, já que ela é uma virtude ou implica virtude, e além disso é extremamente necessária à vida. Com efeito, ninguém escolheria viver sem amigos, ainda que dispusesse de todos os outros bens, e até mesmo pensamos que os ricos, os que ocupam altos cargos, e os que detêm o poder são os que mais precisam de amigos; de fato, de que serviria tanta prosperidade sem a oportu­nidade de fazer o bem, se este se manifesta sobretudo e em sua mais louvável forma em relação aos amigos? Ou então como se pode manter e salvaguardar a prosperidade sem amigos? Quanto maior ela for, mais perigos correrá. E por outro lado, as pessoas pensam que na pobreza e no infortúnio os amigos são o único refúgio.
A amizade ajuda os jovens a evitar o erro; ajuda os mais velhos, amparando-os em suas necessidades e suprindo as atividades que declinam com o passar dos anos; e os que estão no vigor da idade ela estimula a prática de nobres ações, pois com amigos - "dois que andam juntos"[1] -  as pessoas são mais capazes de agir e de pensar.
Também os pais parecem senti-la naturalmente pelos filhos e os filhos pelos pais, não só entre os seres humanos, como também entre as aves e a maior parte dos animais. Membros da mesma raça a sentem uns pelos outros, principalmente a dos seres humanos, e por isso louvamos os que são amigos de seu semelhante. Até em nossas viagens podemos observar a formação de uma afinidade e afeição entre as pessoas. A amizade também parece manter as cidades unidas, e dir-se-ia que os legisladores preocupam-se mais com a amizade do que com a justiça, pois buscam assegurar acima de tudo a unanimidade, que parece assemelhar-se à amizade, ao mesmo tempo que repelem o facciosismo, que é o maior inimigo das cidades. Quando os homens são amigos não necessitam de justiça, ao passo que mesmo os justos necessitam também da amizade; e considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma espécie de amizade.
A amizade não é apenas necessária, mas também nobre, pois louvamos os homens que amam os seus amigos e considera-se que uma das coisas mais nobres é ter muitos amigos. Ademais, pensamos que a bondade e a amizade encontram-se na mesma pessoa.
Muitos pontos relativos à amizade são objeto de debate. Alguns a definem como uma espécie de afinidade e dizem que as pessoas semelhantes são amigas, daí vêm os aforismos "semelhante com semelhante", "cada ovelha com sua parelha", etc.; enquanto outros dizem que "dois do mesmo ofício nunca se entendem". Outros tentam buscar causas mais profundas e mais físicas para este sentimento, como Eurípedes, por exemplo, que diz: "a terra seca ama a chuva, e o divino céu, quando pleno de chuva, adora cair sobre a terra",[2] e Heráclito: "o que se opõe é que é amigo", e "de notas diferentes nasce a mais bela melodia", e ainda: "todas as coisas são geradas pelo antagonismo";[3] enquanto Empédócles e outros sustentam o ponto de vista contrário, segundo o qual o semelhante busca o semelhante.
Podemos deixar de lado os problemas físicos, pois não perten­cem à presente investigação. Examinemos entre os problemas relativos aos homens, os que dizem respeito a caráter e sentimento; por exemplo, se a amizade pode se manifestar entre duas pessoas quaisquer, se as pessoas más podem ser amigas, e se existe só uma espécie de amizade, ou mais de uma. Os que pensam que só existe uma forma de amizade porque ela admite uma graduação baseiam-se em indícios inadequados, uma vez que mesmo as coisas que diferem em espécie admitem graduação. Mas já discutimos esse assunto anteriormente.[4]
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Talvez possamos esclarecer as espécies de amizade se antes chegarmos a conhecer o objeto do amor. Nem todas as coisas pare­cem ser amadas, mas apenas aquelas que merecem sê-lo, e estas são o bom, o agradável e o útil. Porém, o útil é aquilo do qual resulta algo de bom ou agradável, portanto apenas o bom e o agradável merecem ser amados como fins.
Os homens amam o que é bom em si mesmo ou o que é bom para eles? Essas duas coisas, às vezes, são antagônicas, e o mesmo pode-se dizer quanto ao agradável. Pensa-se que cada homem ama o que é bom para ele; e ao passo que o que é bom em si mesmo merece ser amado em si mesmo, o que é bom para determinado homem merece ser amado apenas por ele; entretanto cada homem ama não o que é bom para ele, mas o que lhe parece bom. Mas isso não vem ao caso; diremos apenas que isto é "o que parece digno de ser amado".
As pessoas amam por três motivos. Para o amor dos objetos inanimados não empregamos a palavra "amizade", visto que não ocorre neste caso reciprocidade de afeição, e tampouco um deseja bem ao outro (de fato, seria ridículo se desejássemos bem ao vinho; se desejamos alguma coisa a ele é que se conserve, para que possamos continuar a usufruí-lo); mas quanto aos amigos, dizemos que devemos desejar-lhes o bem no interesse deles próprios. Porém, aos que desejam o bem dessa maneira só atribuímos benevolência, se o desejo não é recíproco; quando recíproca, a benevolência torna-se amizade. Ou devemos acrescentar "quando é conhecida por quem é o objeto da benevolência"? De fato, muita gente deseja o bem à pessoas que nunca viu, e as julga boas e prestativas; e uma delas pode retribuir-lhe esse sentimento. Essas pessoas parecem desejar o bem umas às outras, todavia como chamá-las de amigas se elas ignoram os seus mútuos sentimentos? Assim, para serem amigas, as pessoas devem conhecer uma à outra, desejandose reciprocamente o bem, por uma das razões mencionadas.


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Essas razões diferem entre si em espécie; por conseguinte, é em espécie também que diferem as correspondentes formas de amor e de amizade. Portanto, há três espécies de amizade, em número igual às coisas que merecem ser amadas, uma vez que uma afeição mútua, conhecida pelas duas partes, pode se basear em cada uma das três qualidades, e, os que se amam, desejam bem um ao outro com referência à qualidade que fundamenta sua amizade.
Aqueles que fundamentam sua amizade no interesse amam-se por causa de sua utilidade, por causa de algum bem que recebem um do outro, mas não amam, um ao outro, por si mesmos. O mesmo se pode dizer a respeito dos que se amam por causa do prazer; não é por causa do caráter que os homens amam as pessoas espirituosas, mas porque as consideram agradáveis. Desse modo, os que amam as outras por interesse, amam pelo que é bom para eles mesmos, e os que amam em razão do prazer, amam em virtude do que é agradável a eles, e não porque o outro é a pessoa amada, mas porque ela é útil ou agradável.
Assim, essas amizades são apenas acidentais, pois a pessoa amada não é amada por ser o homem que é, mas porque proporciona algum bem ou prazer. É por isso que tais amizades se desfazem facilmente se as partes não permanecem como eram no início, pois se uma das partes cessa de ser agradável ou útil, a outra deixa de amá-la. Acresce que o útil não é permanente, mas está constantemente mudando. Dessa forma, quando desaparece o motivo da amizade, esta se desfaz, pois existia apenas como um meio para chegar ao um fim.
Essa espécie de amizade parece existir sobretudo entre os velhos (pois na velhice as pessoas buscam não o agradável, mas o útil), e entre os jovens que buscam a utilidade. Mas tais pessoas não convivem muito umas com as outras, pois muitas vezes nem sequer se vêem com agrado, e por isso não sentem necessidade da convivên­cia, a menos que ela seja mutuamente proveitosa. O convívio só lhes é agradável enquanto desperta uma na outra a esperança de algum bem que lhes possa acontecer.
Inclui-se entre essas amizades a hospitalidade. Por outro lado, a amizade dos jovens parece visar ao prazer, pois eles são guiados pela emoção e buscam acima de tudo o que lhes é agradável e as coisas imediatas; mas à proporção que o tempo passa, seus prazeres mudam. Eis por que fazem e desfazem amizades rapidamente; sua amizade muda de acordo com o objeto que lhes parece agradável, e tal prazer se altera bem depressa.
Os jovens são também amorosos, pois, em sua maior parte, a amizade que existe no amor depende da emoção e aspira ao prazer; é por isso que se apaixonam tão rapidamente quanto esquecem sua paixão, mudando, com frequência, no espaço de um só dia. Porém, essas pessoas desejam passar juntas os seus dias e a sua vida, pois só assim alcançam o propósito da sua amizade.
A amizade perfeita é aquela que existe entre os homens que são bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos. Dessa forma, aqueles que desejam o bem aos seus amigos por eles mesmos são amigos no sentido mais próprio, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não por acidente. Por essa razão, sua amizade durará enquanto essas pessoas forem boas, e a bondade é uma coisa muito duradora. E cada uma dessas pessoas é boa em si mesma e para o seu amigo, pois os bons são bons em absoluto e reciprocamente úteis. Dessa forma, essas pessoas são também agradáveis, pois os bons o são tanto em si mesmos como um para o outro, uma vez que a cada um suas próprias atividades são motivo de prazer, e as ações dos homens bons são as mesmas ou parecidas.
Uma amizade assim, como seria de esperar, é permanente, visto que eles encontram um no outro todas as qualidades que os amigos devem possuir. Toda amizade, com efeito, visa ao bem ou o prazer, quer em abstrato, quer em relação àquele que sente a amizade, e baseia-se em uma certa semelhança; e à amizade entre homens bons pertencem todas as qualidades mencionadas, em razão da natureza dos próprios amigos, pois no caso de uma amizade desse tipo as outras qualidades também são semelhantes em ambos os amigos; e o que é bom no sentido absoluto também é agradável no sentido absoluto, e essas são as mais estimáveis qualidades que existem. O amor e a amizade, portanto, ocorrem principalmente e em sua melhor forma entre homens desta espécie.
Mas é natural que tais amizades sejam raras, pois homens assim são também raros. Além disso, uma amizade dessa espécie exige tempo e intimidade. Como diz o provérbio, as pessoas não podem conhecer-se mutuamente enquanto não tiverem "consumido muito sal juntos"; e tampouco podem se aceitar como amigos en­quanto cada um não parecer digno de amizade ao outro, e este não lhe houver conquistado a amizade. As pessoas que depressa mostram mutuamente sinais de amizade desejam tornar-se amigas, mas não o serão, a menos que ambas sejam dignas de amizade e reconhecerem este fato, pois um desejo de amizade pode surgir depressa, porém a amizade não.
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Essa espécie de amizade, então, é perfeita tanto no que se refere à duração quanto a todos os outros aspectos, e nela cada um recebe do outro, em todos os sentidos, o mesmo que dá, ou algo de semelhante; e é isso o que deve ocorrer entre amigos. A amizade que tem em vista o prazer tem certa semelhança com esta espécie, pois as pessoas boas são de fato agradáveis umas às outras. O mesmo vale para a amizade que busca a utilidade, pois as pessoas boas também são úteis reciprocamente. Entre os homens destas espécies inferiores, as amizades são mais duradouras quando os amigos obtêm a mesma coisa um do outro (o prazer, por exemplo) e não somente a mesma coisa, mas também da mesma fonte, como ocorre entre pessoas espirituosas, e não como ocorre entre amante e amado; com efeito, estes não encontram prazer nas mesmas coisas, mas o amante compraz-se em ver o amado e este em estar recebendo atenções do seu amante; e quando acaba o viço da moci­dade a amizade também acaba, pois um já não experimenta prazer em olhar para o outro, e o segundo já não mais recebe atenções do primeiro. Entretanto, muitos amantes são constantes, se a intimidade os levou a amar o caráter um do outro pela afinidade que existe entre eles. Mas as pessoas cujo amor consiste em troca de vantagens e não de prazeres são menos amigas de verdade e menos constantes. Os que são amigos por causa da utilidade separam-se quando cessa a vantagem, pois não amavam um ao outro, mas apenas a utilidade.
Por conseguinte, quando a amizade é por prazer ou interesse até os maus podem ser amigos uns dos outros, ou os bons podem ser amigos dos maus, ou aquele que não é bom nem mau pode ser amigo de qualquer tipo de pessoa; mas pelo que são por si mesmos, só os homens bons podem ser amigos. De fato, as pessoas más não se deleitam com o convívio uma das outras, salvo se essa relação lhes traz algum proveito.
Apenas a amizade entre os bons, e só ela, é invulnerável à calúnia, pois não damos ouvidos facilmente ao que qualquer um diga a respeito de alguém que durante muito tempo foi posto à prova; e é entre os bons que encontramos a confiança do senti­mento expresso pelas palavras "ele nunca me seria desleal", e tudo o mais que se espera de uma verdadeira amizade. Nas outras espécies de amizade, entretanto, nada impede que suspeitas possam vir a se manifestar.
Com efeito, os homens estendem o nome de amigos até àqueles cuja motivação é o interesse, e nesse sentido pode-se dizer que as disposições são amigáveis (pois as alianças de disposições parecem ter em vista a vantagem), e também aos que se amam tendo em vista o prazer (e é neste sentido que se diz serem amigas as crianças). Assim, talvez deveríamos também chamar amigas a tais pessoas e dizer que há várias espécies de amizade - primeiro, e na acepção própria, a dos homens bons enquanto bons, e depois, por analogia, as outras espécies. Com efeito, é por causa de algo bom e algo que se assemelhe ao que é encontrado na ver­dadeira amizade que os homens no primeiro caso são amigos, já que até o agradável é bom para os que amam o prazer. Porém, não ocorre com frequência que essas duas espécies de amizade se jun­tem, nem as mesmas pessoas se tornam amigas por interesse ou tendo em vista o prazer, pois as coisas que apenas acidental­mente se relacionam umas com as outras não andam juntas com frequência.
Uma vez que a amizade divide-se em duas espécies, os maus serão amigos visando à utilidade ou ao prazer, pois com relação a esse aspecto se assemelharão um ao outro; entretanto, os bons serão amigos por eles mesmos, isto é, por causa da sua bondade. Eles, portanto, são amigos no sentido absoluto da palavra, enquanto os outros o são acidentalmente e por analogia com as pessoas boas.
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Ocorre com relação à amizade o mesmo que sucede a respeito da virtude: alguns homens são chamados bons com relação a uma disposição de caráter, e outros com relação a uma atividade. Com efeito, as pessoas que vivem juntos deleitam-se uma com a outra e beneficiam-se mutuamente, mas quando estão adormecidas ou se acham separadas no espaço não exercem as atividades próprias da amizade, não obstante sejam capazes de tanto. A distância não faz desaparecer a amizade em absoluto, mas somente a sua atividade. No entanto, se a ausência se mantém por muito tempo, parece de fato fazer com que as pessoas esqueçam sua amizade; e vem daí o provérbio "a ausência desfaz as amizades".
Nem os velhos, nem os acrimoniosos parecem propensos à amizade, pois tais pessoas não tem muito de agradável, e ninguém deseja passar seus dias com pessoas cuja companhia é dolorosa ou não é agradável, já que a natureza parece evitar acima de tudo o que é penoso e buscar o agradável. Quando duas pessoas se apreciam mutuamente mas não convivem, parecem apenas se olhar com simpatia, mas não são verdadeiros amigos. Com efeito, nada é mais característico dos amigos do que o desejo de estarem juntos, e embora sejam as pessoas necessitadas as que desejam benefícios, até as que são sumamente felizes desejam companhia, e na verdade são estas justamente as que menos gostam da solidão. Mas as pessoas não podem conviver se não são agradáveis umas às outras e não apreciam as mesmas coisas, como parece ocorrer com os amigos que são também companheiros.
A verdadeira amizade, portanto, é a que existe entre os homens bons, como dissemos tantas vezes. De fato, o que é bom e agradável no sentido absoluto parece ser estimável e desejável, e a cada pessoa o que é bom e agradável é o que assim se afigura para ele; e por ambos esses motivos o homem bom é estimável para o outro homem bom. Parece que o amor é um sentimento e a amizade é uma disposição de caráter; com efeito, pode-se sentir amor até pelas coisas inanimadas, mas o amor mútuo envolve escolha, e a escolha origina-se de uma disposição de caráter. Ademais, os homens desejam bem àqueles a quem amam por eles mesmos, e não em razão de um sentimento, mas de uma disposição de caráter. Aqueles que amam um amigo amam o que é bom para si mesmos, pois o homem bom, ao tornar-se amigo, torna-se um bem para o seu amigo. Cada qual, então, ao mesmo tempo que ama o que é bom para si, retribui desejando bem e proporcionando prazer ao amigo na mesma medida; diz-se que amizade é igualdade, e ambas são encontradas mais comumente na amizade das pessoas boas.
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Entre as pessoas idosas e acrimoniosas é menos frequente surgir amizade, pois tais pessoas são menos bem-humoradas e não encontram muito prazer na companhia umas das outras; e a boa disposição e a sociabilidade são consideradas as marcas principais de amizade, e são as suas causas. É por isso que, ao passo que os jovens são rápidos em faze r amizades, o mesmo não ocorre com os velhos: os homens não se tornam amigos daqueles cuja companhia não lhes agrada; e, do mesmo modo, também as pessoas acrimoniosas não se tornam amigas com facilidade. Tais pessoas podem demonstrar benevolência umas para com as outras, desejando-se bem e ajudando-se em caso de necessidade; no entan­to, dificilmente se poderia dizer que são amigas, pois não passam juntas os seus dias, nem se comprazem na companhia uma da outra; e estas são consideradas as características marcantes da amizade.
Não se pode ser amigo de muitas pessoas no sentido de ter com elas uma amizade perfeita, da mesma maneira que não se pode amar muitas pessoas ao mesmo tempo (pois o amor é, de certo modo, um sentimento exacerbado, e é da sua natureza dirigir-se a uma única pessoa); e não ocorre facilmente que muitas pessoas agradem ao mesmo tempo a um indivíduo só, ou mesmo que, talvez, pareçam boas aos olhos deste indivíduo. É preciso, para uma amizade perfeita, que as duas partes adquiram experiência recíproca e se tornem íntimas, e isso custa muito esforço. Mas por prazer ou utilidade é possível que muitas pessoas agradem a uma só, uma vez que muitas pessoas são úteis ou agradáveis, e tais serviços não exigem muito tempo.
Dessas duas espécies, a que visa ao prazer se parece mais com a amizade quando as duas partes recebem as mesmas coisas uma da outra, e comprazem-se uma com a outra ou com as mesmas coisas, como nas amizades dos jovens, pois é nessas amizades que se observa mais frequentemente a generosidade, enquanto a amizade que se baseia na utilidade é mais própria das pessoas mercenárias.
As pessoas sumamente felizes também não necessitam de amigos úteis, mas de amigos agradáveis, pois desejam conviver com alguém e, embora possam suportar durante um curto período de tempo coisas que causam sofrimento, nenhuma pessoa poderia suportar isso constantemente, nem mesmo se se tratasse do próprio bem, caso este lhe causasse sofrimento, e é por isso que buscam amigos agradáveis. Mas talvez elas devessem buscar amigos que, sendo agradáveis, também fossem bons, pois assim teriam todas as características que devem ter os amigos.
Os homens que ocupam posição de mando parecem ter amigos de diferentes classes. Alguns lhes são úteis e outros são agradáveis, mas raramente o mesmo indivíduo, ao mesmo tempo, reúne essas qualidades. De fato as pessoas que estão em tais posições não procuram nem aqueles que além de agradáveis, sejam virtuosos, nem aqueles cuja utilidade tenha em vista objetos nobres; quando estão interessadas em prazeres, buscam a companhia de pessoas espirituosas, e quanto ao outro caso, escolhem aqueles que são hábeis em fazer o que lhes mandam; mas as duas características raramente se encontram em uma só pessoa. Já dissemos que o homem bom é ao mesmo tempo útil e agradável, mas pessoa assim não se torna amiga de quem lhe é superior em posição, a não ser que também lhe seja superior em virtude; mas mesmo assim, não se esta­beleceria uma igualdade, visto que ele seria ultrapassado em ambos os respeitos. Entretanto, não é fácil se encontrar pessoa desse tipo.
Seja como for, as amizades acima mencionadas envolvem igualdade, pois os amigos recebem as mesmas coisas um do outro e desejam do outro o mesmo bem que lhe concede, ou trocam coisas entre si, por exemplo, o prazer pela utilidade. Todavia, já dissemos, essas amizades são menos verdadeiras e menos duradouras. É por sua semelhança ou dessemelhança com a amizade que a consideramos ou não amizade. É por sua semelhança em relação à amizade conforme à virtude que elas parecem ser amizades (de fato, uma delas envolve prazer e a outra utilidade, e estas ca­racterísticas também fazem parte da amizade que existe entre os virtuosos); mas por ser a amizade conforme à virtude duradoura e invulnerável à calúnia, ao passo que as outras espécies de amizade mudam rapidamente (além de diferirem em muitos aspectos da primeira), que parecem não ser amizades verdadeiras - ou seja, em razão de sua dessemelhança com a amizade dos virtuosos.
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Mas existe uma outra espécie de amizade que envolve uma desigualdade entre as partes, por exemplo, a amizade entre pai e filho, e em geral a amizade entre a pessoa mais velha e a mais jovem, a amizade entre marido e mulher, e em geral a amizade entre quem manda e quem obedece.
E essas amizades diferem também umas das outras, pois a que existe entre pais e filhos não é a mesma que existe entre quem manda e quem obedece; nem a amizade de pai para filho é idêntica à de filho para pai, como a de marido para mulher não é a mesma que a de mulher para marido. De fato, a virtude e a função de cada uma dessas pessoas são diferentes, e por isso igualmente diferem o amor e as razões pelas quais as pessoas envolvidas são amigas.
Nessas diferentes espécies de amizade, cada parte, portanto, não recebe a mesma coisa da outra e nem deveria pretender isso. Quando os filhos dão aos pais aquilo que devem dar aos que lhes deram a vida, e os pais aquilo que devem dar aos filhos, a amizade entre tais pessoas é duradoura e equitativa.
Em todas as amizades que envolvem desigualdade, o amor também deve ser proporcional, isto é, a parte melhor deve receber mais amor do que dá, assim como deve ser mais útil, e de modo análogo em cada um dos outros casos, pois quando o amor é pro­porcional ao merecimento das partes estabelece-se, de certa forma, a igualdade, que é considerada uma característica essencial da ami­zade.
Mas a igualdade não parece assumir a mesma forma nos atos de justiça e na amizade. De fato, na esfera da justiça o que é igual no sentido primário é o que está em proporção com o mérito, en­quanto a igualdade quantitativa é secundária; mas na amizade a igualdade quantitativa é primária, e a proporção ao mérito, secun­dária. Essa afirmação se torna mais clara quando há um grande desequilíbrio entre as partes em relação à virtude, ao vício, à riqueza ou qualquer outra coisa; nesse caso, já não são amigos e nem sequer esperam sê-lo. Essa situação é mais evidente no caso dos deuses, que nos ultrapassam sumamente em tudo o que é bom. Mas é também clara no caso dos reis, pois os homens que lhes são por demais inferiores tampouco esperam tornar-se seus amigos, e nem os indivíduos de pouco valor esperam ser amigos dos melhores ou mais sábios entre os homens. Nesses casos não é possível definir com precisão até que ponto as pessoas podem permanecer amigas. De fato, a amizade pode sobreviver ao desaparecimento de muitas das partes que a compõe, mas quando uma das partes se distancia demasiadamente, como ocorre com os deuses, termina a possibilidade de amizade. Isso, aliás, nos leva a perguntar se os amigos verdadeiramente estão desejando os maiores bens aos seus amigos, quando desejam que estes sejam deuses, uma vez que neste caso eles já não seriam seus amigos e por conseguinte não representariam bem para eles (pois os amigos efetivamente são um grande bem). Então, se tínhamos razão em afirmar que o amigo deseja bem ao seu amigo por ele ser aquilo que é, a resposta é que seu amigo deve continuar sendo a espécie de ser que é; portanto é apenas ao amigo, na medida em que ele continua a ser um homem, que o outro desejará os maiores bens. Mas talvez não lhe deseje todos os maiores bens, pois cada homem deseja o bem acima de tudo a si mesmo.
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A maioria das pessoas parece, em razão de sua ambição, preferir ser amada a amar, e é por isso que em geral os homens gostam da lisonja. De fato, o adulador é um amigo em posição inferior, ou finge ser amigo ao mesmo tempo que simula amar mais do que é amado; e ser amado parece guardar bastante semelhança com receber honrarias, e é a isso que a maioria das pessoas aspira.
Todavia, parece que a maior parte das pessoas não escolhe a honra por si mesma, mas apenas acidentalmente. Tais pessoas gostam de ser distinguidas pelos que ocupam posição de autoridade, por causa de suas esperanças (pois pensam que, se necessitarem de alguma coisa, a conseguirão com eles, e por isso se regozijam com as honras como prenúncio de favores futuros). Por seu turno, os que desejam ser honrados por homens bons e sábios, querem con­firmar a boa opinião que fazem de si mesmos; deleitam-se em ser honrados, portanto, porque acreditam na própria bondade apoiados no julgamento dos que lhes fazem elogios.
Por outro lado, ser amado é algo bom em si mesmo, e por isso parece melhor ser amado que receber honras, e a amizade parece desejável por si mesma. Mas a amizade parece residir antes em amar do que em ser amado, como prova o deleite que as mães sentem em amar seus filhos; com efeito, algumas mães entregam a outros os seus filhos para serem educados, e, sabendo onde estão, os amam sem procurar ser amadas em retribuição (se não lhes é possível as duas coisas), mas parecem satisfazer-se em vê-los prosperar e os amam mesmo quando estes, por ignorância, não lhes dão nada do que é devido a uma mãe.
E assim, já que a amizade depende mais de amar que de ser amado, e são os que amam os seus amigos que são louvados, amar parece ser a virtude característica dos amigos, de tal forma que só aqueles que amam na medida justa são amigos constantes, e só a amizade desses é duradoura.
É desta maneira, mais que qualquer outra, que até as pessoas desiguais podem ser amigas, pois é possível estabelecer-se uma igualdade entre elas. Com efeito, igualdade e semelhança são amizade, especialmente a semelhança dos que são semelhantes pela virtude. Sendo constantes por natureza, eles mantêm-se fiéis um ao outro e não solicitam nem prestam serviços degradantes, mas ao contrário, pode-se dizer que um afasta o outro do mal, pois é uma característica dos homens bons não fazer o mal eles próprios, nem permitir que seus amigos o façam. Os maus, entretanto, não tem constância, já que nem a si mesmos permanecem semelhantes; são amigos durante breve tempo, por se comprazerem na maldade um do outro. As amizades úteis ou agradáveis são mais dura­douras, ou melhor, duram enquanto os amigos proporcionam pra­zeres ou vantagens um ao outro. A amizade que visa à utilidade parece ser a que mais facilmente se forma entre contrários (por exemplo, entre pobre e rico, entre ignorante e culto), pois as pessoas, de fato, ambicionam aquilo que lhes falta e dão algo em troca. Nessa classe também se poderia incluir a amizade entre amante e amado, e entre a pessoa bela e a feia. É por essa razão que os amantes às vezes parecem ridículos, quando pretendem ser amados em troca; se ambos são igualmente dignos de amor, sua pretensão talvez possa se justificar, no entanto é ridícula quando essas pessoas não têm nenhuma qualidade própria para despertar o amor.
Talvez a verdade seja que o contrário nem sequer busca o con­trário por sua própria natureza, mas apenas acidentalmente, já que o intermediário é o objeto verdadeiro do desejo. Com efeito, é o meio-termo que é realmente bom; por exemplo, para o seco, o bom não é ficar úmido, mas passar ao estado intermediário, e igual­mente com relação ao quente e em todos os outros casos. Mas deixemos de parte estes assuntos, que, na verdade, são um pouco estranhos à nossa investigação.
9
Como dissemos no início, a amizade e a justiça parecem se relacionar com os mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas. De fato, em todas as formas de comunidade encontramos
alguma forma de justiça e também de amizade; pelo menos, os homens se dirigem como amigos aos seus companheiros de viagem ou aos seus camaradas de armas, e igualmente os que são parceiros em qualquer outra espécie de associação. Mas sua amizade vai até onde vai sua associação, e do mesmo  modo, a justiça que entre eles existe. O provérbio segundo o qual "os amigos têm bens em comum" é a expressão da verdade, pois a amizade depende da comunhão de bens.
Os irmãos e os membros de uma associação têm todas as coisas em comum, mas esses outros a quem nos referimos possuem em comum certas coisas - alguns mais, outros menos -, pois também no que diz respeito às amizades, algumas são verdadeiras amizades em maior e outras em menor intensidade. E as imposições da justiça em relação às amizades também diferem; os deveres dos pais para com os filhos e os dos irmãos entre si não são os mesmos, nem os dos camaradas e o dos cidadãos em geral, e do mesmo modo no que concerne às outras espécies de amizade.
Também há uma diferença, por conseguinte, entre os atos que são injustos para com cada uma dessas classes de associados, e a injustiça é mais grave quando se manifesta para com os que são amigos num sentido mais amplo (por exemplo, é mais grave de­fraudar um camarada do que um concidadão qualquer, mais grave não ajudar um irmão do que um estranho, e mais grave ferir o próprio pai do que a qualquer outra pessoa. E as imposições da justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade, o que significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e têm uma extensão igual.
Todas as formas de comunidade são como se fossem partes da comunidade política. Por exemplo, os homens viajam juntos tendo em vista alguma vantagem particular e obter alguma coisa necessária à vida; e é por causa da vantagem que a comunidade política parece ter-se originado e continuar, pois esse é o objetivo que os legisladores se propõem, e dizem ser justo o que concorre para a vantagem comum. As outras comunidades têm em vista aspectos particulares dessa vantagem comum; por exemplo, os marinheiros visam ao que é vantajoso, em uma viagem, no que concerne a ganhar dinheiro ou alguma finalidade dessa espécie, e os soldados, ao que é vantajoso na guerra, tanto no que diz respeito às riquezas provenientes de saques, quanto a vitória ou a posse de uma cidade que desejam ocupar, e os membros de tribos ou de povoados procedem da mesma maneira.
Algumas comunidades parecem originar-se da necessidade de prazer, como por exemplo, as associações religiosas e as sociais, que existem para oferecer sacrifícios e proporcionar o convívio; todas parecem incluir-se na comunidade política, que não visa à vantagem imediata, mas sim ao que é vantajoso para a vida no seu todo, oferecendo sacrifícios e promovendo reuniões para esse fim, cultuando os deuses e proporcionando entretenimento para seus componentes. De fato, parece que os antigos sacrifícios e reu­niões ocorriam após as colheitas como uma espécie de festa das primícias, pois era nessa época que os homens podiam se dedicar mais ao lazer. Assim, todas as comunidades parecem fazer parte da comunidade política, e as espécies particulares de amizade devem corresponder às espécies particulares de comunidade das quais se originam.
10
Há três espécies de constituição e igual número de desvios ou perversões, por assim dizer, daquelas. São elas: a monarquia, a aristocracia, e em terceiro lugar a que se baseia na posse de bens e que seria talvez apropriado chamar timocracia, embora a maioria chame governo do povo. A melhor delas é a monarquia, e a pior é a timocracia.
O desvio da monarquia é a tirania, pois ambas são formadas do governo de um só homem, mas entre elas há uma enorme diferença. O tirano tem em vista sua própria vantagem, o rei, a vantagem de seus súditos. De fato, um homem não é rei se não bastar a si mesmo e se não superar os seus súditos em todos os bens; um homem em tais condições não precisa de nada mais, e por isso não tem em vista os interesses próprios, mas os de seus súditos, pois um rei que não for assim terá da realeza apenas o título. Quanto à tirania, ela é o oposto exato de tudo isso: o tirano cuida apenas do bem próprio. E é evidente ser esta a pior forma de desvio, pois o contrário do melhor é que é o pior. A monarquia degenera em tirania, que é a forma pervertida do governo de um só homem, e o mau rei converte-se em tirano.
Por seu lado a aristocracia degenera em oligarquia pela maldade dos governantes, que distribuem sem equidade os bens da cidade, e todas ou a maior parte das coisas boas destinam a si mesmos, e as magistraturas ficam sempre nas mãos das mesmas pessoas, privilegiando-se acima de tudo a riqueza; e assim os governantes são poucos e maus, em vez de serem os melhores entre os homens.
Por seu turno, a timocracia degenera em democracia. Ambas guardam afidades, uma vez que a própria timocracia tem como ideal o governo da maioria, e todos são contados como iguais, independentemente de suas posses. A democracia é a menos má das três espécies de perversão, pois no seu caso a forma de constituição apresenta apenas um ligeiro desvio.
São estas as mudanças mais frequentes às quais estão sujeitas as constituições, pois são as transições menores e mais fáceis.
Poder-se-ia encontrar analogias e, por assim dizer, modelos das várias constituições nas próprias famílias. Com efeito, a associação de um pai com seus filhos apresenta a forma da monarquia, já que o pai zela por seus filhos. Eis por que Homero chama Zeus de "pai";[5] e o ideal da monarquia é ser um governo paternal. Mas entre os persas, todavia, o governo dos pais é tirânico, pois ali os pais se servem dos filhos como escravos. Também tirânico é o governo do senhor sobre o escravo, em que a única coisa a que se visa é a vantagem do primeiro. Assim, essa parece ser uma forma correta de governo, mas o tipo persa é degenerado, pois as formas de exercício de autoridade apropriadas a relações diferentes são igual­mente diferentes.
A associação entre marido e mulher parece ser aristocrática, visto que o homem exerce sua autoridade como convém ao seu mérito, mas deixa a cargo da esposa os assuntos pertinentes a uma mulher. Se o homem governa em todos os assuntos, a relação degenera em oligarquia, pois ao proceder assim ele não age de acordo com o valor respectivo de cada sexo, nem governa por causa da sua superioridade. Entretanto, às vezes são as mulheres que gover­nam, quando são herdeiras; nesse caso, o seu governo não se baseia na excelência, mas na riqueza e no poder, tal qual ocorre nas oligar­quias.
A associação de irmãos assemelha-se à timocracia, pois eles são iguais, a não ser que haja grande diferença de idades; e por isso, quando diferem excessivamente na idade, a amizade já não é do tipo fraternal. A democracia é encontrada sobretudo nas famílias sem um chefe (todos se encontram em um nível de igualdade), e naquelas em que o chefe é fraco e todos agem como bem entendem.
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Cada uma das constituições comporta amizade na exata proporção em que comporta a justiça. A amizade entre governantes e governados depende da quantidade de benefícios conferidos, pois um rei beneficia seus súditos quando, sendo um homem bom, cuida do bem-estar destes tal qual faz o pastor com as suas ovelhas (por isso Homero chamou Agamenon de "pastor dos povos")[6]. A amizade de um pai também é desse gênero, embora este exceda o outro na grandeza dos benefícios dispensados, pois é a causa da existência dos filhos, o que se considera o maior dos bens, e do mesmo modo cuida de sua alimentação e educação. Tudo isso se costuma também atribuir aos avós. Além disso, um pai, por natureza, tende a governar seus filhos, os avós, os descendentes, e os reis, os seus súditos. Estas amizades implicam superioridade de uma parte sobre a outra, e é por isso que se prestam honras aos antepas­sados.
Por conseguinte, a justiça que existe entre pessoas relacionadas umas às outras dessa forma não é a mesma para ambas as partes, mas em cada caso é sempre proporcional ao mérito; e isso é verdadeiro também em relação à amizade.
Por sua vez, a amizade entre marido e mulher é a mesma que se observa na aristocracia, uma vez que ela está em conformidade com a virtude: o melhor obtém um quinhão maior de bens e cada um recebe o que merece; e o mesmo se aplica à justiça nessas relações.
25] A amizade entre irmãos é como a que existe entre camaradas, pois são iguais e próximos uns dos outros pela idade, e pessoas assim, em geral, assemelham-se nos sentimentos e no caráter. Essa espécie de amizade é também semelhante ao governo timocrático, pois nesse tipo de constituição o ideal é serem os cidadãos iguais e equitativos, e por isso o governo é assumido por turnos em base de igualdade; a amizade baseada na igualdade corresponde à essa constituição.
Nas formas desviantes de governo, entretanto, como quase não se pode dizer que a justiça existe, também é rara a amizade. E onde a justiça menos existe - que é na pior das formas, a tirania - há pouca ou nenhuma amizade. Efetivamente, onde nada aproxima o governante dos governados não pode existir amizade, visto que não há justiça. Por exemplo, entre artífice e ferramenta, alma e corpo, senhor e escravo, os segundos termos de cada um desses pares são beneficiados por aqueles que os utilizam, mas não existe amizade nem justiça em relação a coisas inanimadas.
Tampouco existe amizade em relação a um cavalo, a um boi ou a um escravo enquanto escravo, pois não há nada em comum entre as duas partes: o escravo é uma ferramenta viva e a ferramenta é um escravo inanimado. Enquanto escravo, portanto, não se pode ser seu amigo, porém enquanto ser humano isso é possível, pois parece haver uma certa justiça entre um homem qualquer e outro homem qualquer que tenham condições para participar de um sistema jurídico ou ser partes em um contrato: portanto, pode haver amizade com um escravo na medida em que este é um homem.
Nas tiranias, então, a amizade e a justiça existem em um grau muito pequeno, mas nas democracias elas têm uma intensidade muito maior, já que onde existe igualdade entre os cidadãos, estes têm muita coisa em comum.
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Como dissemos, toda forma de amizade envolve associação. Entretanto, pode-se distinguir das outras a amizade dos familiares e a dos camaradas. A amizade entre os cidadãos, membros de uma tribo, companheiros de viagem, e outras desse tipo, asseme­lham-se mais às amizades de associação, pois parecem basear-se em uma espécie de pacto. Nesta classe poderíamos incluir a amizade ligada à hospitalidade.
A própria amizade entre familiares, embora seja de várias espécies, parece ser em todos os casos como aquela entre pais e filhos, pois os pais amam os filhos como partes de si mesmos, e os filhos amam os pais por terem se originado deles. Os pais conhecem seus filhos com uma certeza maior do que estes têm quanto a seus pais; e os pais sentem os filhos como seus mais do que os filhos sentem os pais como seus, pois o produto pertence ao produtor (por exemplo, um dente ou um fio de cabelo pertence ao seu dono), mas o produtor não pertence ao seu produto, ou pertence em menor grau. E o tempo também contribui para isso: os pais amam os filhos desde o momento em que estes nascem, mas os filhos começam a amar os pais somente depois de algum tempo, quando adquirem entendimento ou o poder de discriminação pelos sentidos. Por isso fica claro o motivo de ser o amor das mães maior que o dos pais.
Os pais, portanto, amam seus filhos como a si mesmos (estes, em virtude de sua existência separada são como que uma outra encarnação dos pais), enquanto os filhos amam os pais por terem nascido deles, e os irmãos amam uns aos outros por terem nascido dos mesmos pais, uma vez que a sua identidade com estes os torna idênticos entre si (e por isso se diz ser "do mesmo sangue", "do mesmo tronco", etc.). De certa maneira, então, os irmão são a mesma coisa, embora existam como indivíduos separados.
A educação em comum e a semelhança de idade tem um papel importante na amizade entre irmãos, pois "dois da mesma idade se dão bem", e "os que se criaram juntos tendem a ser compa­nheiros"; por isso a amizade dos irmãos tem afinidade com a dos camaradas. E existe uma ligação entre primos e outros parentes por descenderem de irmãos, isto é, por provirem dos mesmos pais. Eles se tornam mais ou menos ligados conforme a proximidade ou distância do ancestral em comum.
A amizade dos filhos pelos pais e a devoção dos homens para com os deuses é a que se tem para com aquilo que é bom e superior, pois eles lhes dispensaram os maiores benefícios, dando-lhes a vida, a alimentação e a educação desde que nasceram. E essa espécie de amizade também proporciona mais benefícios e prazer do que a amizade entre estranhos, uma vez que tais pessoas convivem mais entre si.
A amizade de irmãos tem as características observadas na amizade entre camaradas (sobretudo quando estes são bons) e, de uma maneira geral, entre pessoas semelhantes umas às outras, pois eles vivem em comum e se amam desde o nascimento, e além disso, porque são filhos dos mesmos pais, cresceram juntos e receberam a mesma educação, apresentando, por essa razão, maior semelhança de caráter; acresce que nestes casos a prova do tempo foi aplicada de maneira mais completa e decisiva.
Nos outros graus de parentesco, as relações de amizade variam à proporção da proximidade do parentesco. A amizade entre marido e mulher parece existir por natureza, pois a espécie humana tende naturalmente a constituir casais, mais até do que a constituir cidades, visto que a família é anterior à cidade e mais necessária do que esta, e a reprodução é comum ao homem e aos animais. Entre os outros animais a união se estende apenas até esse ponto, porém os seres humanos vivem juntos não só para procriarem-se, mas também para os vários propósitos da vida. Desde o início são divi­didas as funções, e as do homem e as da mulher são diferentes; assim, eles se ajudam um ao outro fazendo de seus dotes individuais um patrimônio comum. Por essa razão, tanto a utilidade quanto o prazer parecem ser encontrados nesse tipo de amizade; no entanto pode também se basear na virtude, se as duas partes são boas, pois cada uma possui a sua própria forma de virtude, e ambas se comprazem nisso. Os filhos podem constituir um laço de união entre marido e mulher (tanto é que os casais sem filhos separam-se mais facilmente), pois os filhos são um bem comum a ambas as partes, e o que possuem em comum os mantêm unidos.
Como devem tratar-se marido e mulher e, de um modo geral, os amigos, parece coincidir com a questão de determinar qual é a conduta justa, pois, efetivamente, os deveres não parecem ser os mesmos para com um amigo, um estranho, um camarada e um condiscípulo.
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Há três espécies de amizade, como dissemos no começo de nossa investigação, e em relação a cada uma delas alguns são amigos em igualdade de condições, e outros em uma situação de superioridade de um dos amigos em relação ao outro (não só homens igualmente bons podem tornar-se amigos, mas também um homem melhor pode fazer amizade com outro não tão bom, e igualmente nas amizades que têm por base o prazer ou a utilidade os amigos podem ser iguais ou desiguais em relação aos benefícios que proporcionam). Desse modo, os iguais devem ser amigos em uma base de igualdade no amor e tudo o mais, enquanto os desiguais devem beneficiar-se na proporção de sua superioridade ou inferiori­dade.
As queixas e recriminações surgem apenas, ou principal­mente, nas amizades que têm por base a utilidade, e é natural que seja assim. Com efeito, os que são amigos com base na virtude anseiam por fazer bem um ao outro (isso é característico da virtude e da amizade), e entre homens que se emulam nessas coisas não pode haver queixas nem querelas. Nenhum homem é ofendido por um outro que o ama e lhe faz bem; aliás, se é uma pessoa de nobres sentimentos, sua "vingança" é fazer bem ao outro. Um homem que supera o outro nos serviços prestados não se queixará de seu amigo, já que obtém aquilo que pretendia, e o que cada um deles deseja é o bem. Não surgem muitas queixas nas amizades baseadas no prazer, pois ambos os amigos recebem simultaneamente aquilo que desejam, se passar o tempo juntos lhes propcicia prazer; e seria ridículo se alguém se queixasse do outro por não lhe proporcionar prazer, pois depende dele não passar seus dias com esse outro.
Mas a amizade que visa à utilidade traz sempre muitas queixas; com efeito, como cada um se utiliza do outro em seu próprio bene­fício, eles querem sempre sair ganhando na transação, mas sempre acham que saíram prejudicados, e então censuram seus amigos alegando que não recebem tudo o que necessitam e merecem; e aquele que neste caso está fazendo bem ao outro não pode ajudá-lo tanto quanto este deseja.
Como há duas espécies de justiça, uma não escrita e a outra definida por lei, parece haver também uma espécie moral e outra legal de amizade baseada na utilidade. Desse modo, as queixas surgem principalmente quando os homens não desfazem a relação dentro do espírito do mesmo tipo de amizade que existia na época em que a iniciaram.
O tipo legal é aquele que é estabelecido sobre termos defi­nidos. Sua variante puramente comercial baseia-se no pagamento imediato, ao passo que a variante mais liberal dá uma certa margem de tempo, porém estipula uma troca definida. Nesta variante, a dívida é clara e sem ambiguidades, mas a sua tolerância quanto ao prazo para a retribuição contém um elemento de amizade, e por isso em algumas cidades não são admitidas ações judiciais baseadas em tais acordos, pois se considera que os homens que transacionaram em uma base de confiança devem aceitar as consequências.
O tipo moral não estipula condições predeterminadas. Faz uma doação ou algum serviço é prestado como se fosse a um amigo, contudo espera receber uma retribuição equivalente ou maior, como se não tivesse dado e sim feito um empréstimo; e, se a situação da parte que deu é pior após desfazer-se a relação do que antes de havê-la contraído, esse homem que deu se queixará. Isso ocorre porque todos os homens, ou a maioria, desejam o que é nobre mas escolhem o que traz vantagem; no entanto, é nobre fazer o bem a um outro sem ter em vista alguma retribuição, mas a vantagem está em receber benefícios.
Se for possível, portanto, cumpre retribuir com o equivalente do que se recebe, pois não devemos fazer de um homem nosso amigo contra a sua vontade; em casos como este é preciso reconhecer que nos enganamos de início, aceitando um benefício de uma pessoa da qual não devíamos tê-lo aceito, visto que ela não era nossa amiga, e tampouco de alguém que o fez só por fazer, e devemos saldar as contas exatamente como se tivéssemos sido beneficiados mediante termos predefinidos. Efetivamente, teríamos concordado em retribuir se pudéssemos (senão, o próprio benfeitor não contaria com a retribuição); por conseguinte, se for possível devemos retribuir. Mas desde o princípio devemos aquilatar a pessoa por quem estamos sendo beneficiados e em que condições ela procede, a fim de aceitar o benefício dentro de tais condições, ou então recusá-lo, se for preferível.
É discutível se devemos medir um serviço por sua utilidade para o beneficiado e retribuí-lo nesses termos, ou se devemos medi-lo pela benevolência do benfeitor. De fato, os que recebem o benefício dizem ter recebido de seus benfeitores algo que custou pouco a estes e que eles poderiam ter recebido de outros, e desse modo minimizando o serviço; enquanto a pessoa que concedeu o benefício, ao contrário, afirma ter feito o máximo que podia, que isto não poderia ter sido obtido de outrem, e que o benefício foi prestado em um momento de perigo ou de necessidade.
Então, se a amizade é da espécie que visa à utilidade, certamente a vantagem para o beneficiado é a medida, pois é este que solicita o serviço e o outro o ajuda supondo que irá receber uma retribuição equivalente. Assim, a ajuda terá sido exatamente igual à vantagem do beneficiado, o qual, portanto, deve retribuir com o equiva­lente do que recebeu, ou mais (pois isso seria mais nobre).
Por outro lado, nas amizades que se baseiam na virtude não surgem queixas; aqui, a intenção do benfeitor é uma espécie de me­dida, uma vez que na intenção se encontra o elemento essencial da virtude e do caráter.
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Também nas amizades que se baseiam na superioridade surgem divergências; cada parte espera obter mais proveito delas, porém quando isso acontece, a amizade se desfaz. Não somente o homem melhor pensa que merece receber mais, já que um homem bom merece efetivamente receber mais, como o homem mais útil espera o mesmo, alegando que um homem inútil não deve receber tanto quanto o útil, pois nesse caso a amizade deixa de ser amizade para converter-se em caridade, se o que recebe não corres­ponde ao valor dos benefícios conferidos. Essas pessoas supõem que do mesmo modo que em uma sociedade comercial os que entram com mais dinheiro devem ganhar mais, o mesmo deve ocor­rer na amizade. Mas as pessoas inferiores ou que se encontram em estado de necessidade, tem pretensões opostas a esta: pensam que compete a um bom amigo ajudar os amigos necessitados. De que serviria, pensam elas, ser amigo de um homem bom ou poderoso se não se tirasse nenhum proveito disso?
De qualquer modo, parece que cada parte está certa em sua asserção, e que cada um deveria tirar mais vantagem da amizade do que o outro, todavia não da mesma coisa; o superior deveria obter mais honras, e o inferior, em ganho, pois a honra é o prêmio da virtude e da beneficência, e o ganho é a recompensa da inferioridade.
Parece acontecer o mesmo nas disposições constitucionais; o homem que não contribui com nada para o bem comum não é distinguido com honras, pois o que pertence à comunidade é dado a quem a beneficia, e as honras pertencem à comunidade. Não é possível receber ao mesmo tempo riqueza e honra do patrimônio comum, pois ninguém se conforma em receber o menor quinhão em tudo; portanto, ao homem que perde a riqueza confere-se honraria, e riqueza ao que consente em ser pago, já que a proporção em relação ao mérito torna as partes iguais e preserva a amizade, como dissemos.
É essa, então, a maneira pela qual nos deveríamos associar com desiguais: o homem que é beneficiado com respeito à riqueza ou à virtude deve retribuir com honras, compensando o outro na medida de sua capacidade. Com efeito, a amizade pede a um homem que faça o que pode e não o que é proporcional aos méritos do caso, visto que isso nem sempre é possível (por exemplo, no caso das honras prestadas aos deuses ou aos pais), pois ninguém jamais lhes poderia pagar o equivalente do que recebe, mas o homem que os serve tanto quanto está a seu alcance é considerado um homem bom.
É por isso que não parece lícito a um homem deserdar seu pai (embora o pai possa deserdar seu filho); como devedor que é, deve pagar, mas nada do que um filho possa fazer será equivalente ao que recebeu, de tal forma que ele continua sempre em débito. Mas do mesmo modo que credores podem perdoar uma dívida, também um pai pode fazê-lo. Ademais, pensa-se que ninguém repudiaria um filho, a não ser que este fosse profundamente perverso; com efeito, deixando de lado a amizade natural entre pai e filho, é próprio da natureza humana não negar ajuda a um filho. Mas se este de fato é perverso, evitará ajudar o pai ou não fará muito empenho nisso, pois a maioria das pessoas deseja receber benefícios, porém evita fazê-los por considerar que isso não lhe traz proveito.
Sobre estas questões já dissemos bastante.
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[1] Homero, Odisseia, XVII, 218. (N. do T.)
[2] Fragmento 898, 7-10, coletânea de Nauck. (N. do  T.)
[3] Fragmento 8, coletânea de Diehl. (N. do  T.)
[4] Nas obras de Aristóteles que nos restaram não há nenhuma passagem que corresponda exatamente a tal assunto. (N. do T.)
[5] Por exemplo, na Ilíada I, 503. (N. do T.)
[6] Ilíada II, 243. (N. do T.)

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