Professora Danielle Oliveira - material para aula sobre Estilos Literários da Filosofia do 1° ano do Ensino
Médio
Confissões de Santo Agostinho
[Deus concebido como um ser corpóreo e difuso no universo]
VII. I. 1. Estava já morta a
minha adolescência, má e abominável,e entrava na juventude, quanto mais velho
em idade, tanto mais hábito em futilidade, de tal modo que não me era possível
conceber uma substância a não ser aquela que se costuma ver com estes olhos do
corpo.Não te imaginava, meu Deus, sob a forma de um corpo humano, desde que
comecei a ouvir falar de filosofia; sempre evitei isso e alegrava-me por ter
encontrado a mesma maneira de ver na fé da nossa mãe espiritual, a tua Igreja
católica; mas não me ocorria outra coisa que pudesse conceber acerca de ti. E,
sendo eu homem – e que homem! – esforçava-me por te conceber como supremo,
único e verdadeiro Deus2, e, com todo o meu ser, acreditava que tu és incorruptível,
e inviolável, e imutável, porque, não sabendo por que razão nem por que modo,
no entanto via claramente e estava certo de que aquilo que é corruptível é
inferior àquilo que não é corruptível, e aquilo que é inviolável, sem qualquer hesitação
eu punha-o antes do que é violável, e que o que não está sujeito a nenhuma
espécie de mudança é superior àquilo que pode sofrer mudança. Clamava
violentamente o meu coração3 contra todos estes meus fantasmas e, com um único
golpe, esforçava-me por afugentar da visão do meu espírito o bando da imundície
que esvoaçava em torno de mim: e que, mal era rechaçado, num abrir e fechar de
olhos4, de novo aglomerado, logo voltava e se precipitava sobre o meu semblante
e o obnubilava. Deste modo, embora não te concebesse sob a forma de um corpo
humano, era todavia levado a conceber alguma coisa de corpóreo espalhado pelos
espaços, quer imanente ao mundo, quer difuso para além do mundo, pelo infinito,
e que fosse justamente isso o incorruptível, e o inviolável, e o imutável que
eu antepunha ao corruptível, e ao violável, e ao mutável; porque tudo aquilo
que eu privava de tais espaços parecia-me ser o nada, mas o nada absoluto, nem
mesmo o vazio, como quando se tira um corpo de um lugar e fica o lugar esvaziado
de qualquer corpo, seja ele da terra, da água, do ar ou do céu, mas todavia há
um lugar vazio, como se fosse um ‘nada espaçoso’.
2-João 17:3.
3-Lamentações 2:18.
4-1
Coríntios 15:52.
[O livre arbítrio,
causa do pecado]
VII. III. 4. Mas, também ainda,
embora dissesse e acreditasse firmemente que és incontaminável e inalterável e
sob nenhum aspecto mutável, tu, nosso Deus, Deus verdadeiro, que criaste não só
as nossas almas, mas também os nossos corpos, e não apenas as nossas almas e os
nossos corpos, mas também todos nós e todas as coisas, não tinha por explicada
e esclarecida a causa do mal. Fosse ela qual fosse, porém, via que era preciso
procurá-la de modo a que, graças a ela, não fosse obrigado a acreditar que é
mutável o Deus imutável, ou que eu próprio me convertesse naquilo que eu
procurava. E assim, procurava-a em segurança e certo de que não era verdade o que
diziam aqueles que eu evitava com toda a minha alma, porque os via, procurando
donde provinha o mal, cheios de maldade7, em virtude da qual eram de opinião
que é mais a tua substância que está sujeita a sofrer o mal, do que a deles a
fazê-lo.
5.E esforçava-me por compreender
o que ouvia: que o livre arbítrio da vontade é a causa de praticarmos o mal e o
teu reto juízo8ade o sofrermos, mas não conseguia compreender essa causa com
clareza. E assim, tentando arrancar do abismo o olhar do meu espírito, afundava-me
de novo, e muitas vezes tentava e me afundava uma e outra vez. Na verdade,
elevava-me para a tua luz o fato tanto de sabe que tinha uma vontade como o de
saber que vivia. Por isso, quando queria ou não queria alguma coisa, tinha
absoluta certeza de que quem queria ou não queria não era outro senão eu. E
via, cada vez mais, que aí estava a causa do meu pecado. E aquilo que fazia
contra vontade via que era mais padecer do que fazer, e julgava que isso não
era culpa, mas castigo, pelo qual, como eu logo confessava, considerando te
justo, era castigado não injustamente. Mas de novo dizia: ‘Quem me fez?
Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas bom, mas o próprio bem? Donde
me vem então o querer o mal e o não querer o bem? Será para haver um motivo para
que eu seja castigado justamente? Quem colocou isto em mim, e plantou em mim
este viveiro de amargura9, embora todo eu tenha sido feito por um Deus tão
doce? Se o autor é o diabo, donde veio o mesmo diabo? Mas se também ele, por
uma vontade perversa, de anjo bom se tornou diabo, donde lhe veio, também a
ele, a má vontade pela qual se tornaria diabo, quando o anjo, na sua
totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente bom?’ De novo me deixava
abater e sufocar com estes pensamentos, mas não me deixava arrastar até àquele
inferno do erro, onde ninguém te confessa10, quando se julga que és tu a
padecer o mal, e não o homem que o pratica.
7-Eclesiastes 9:3; Romanos
1:29.
8-Salmo 118:137.
9-Hebreus 12:15.
10-Salmo 6:6.
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[Só Cristo é o caminho da salvação]
VII. XVIII. 24. E procurava o
caminho para adquirir força que fosse conveniente para eu fruir de ti, e não
encontrava, enquanto não abraçasse o mediador de Deus e dos homens, o homem
Cristo Jesus88, que é, acima de todas as coisas, Deus bendito por todos os
séculos89, o qual me chamava e dizia: Eu sou o caminho, a verdade e a vida90, e
o ali-mento, que eu era incapaz de tomar, misturado à carne, porque o Verbo se
fez carne91, para que a tua sabedoria, por meio da qual fizeste todas as coisas
92, amamentasse a nossa infância. Eu, humilde, não tinha por meu Deus o humilde
Jesus, nem sabia de que coisa podia ser mestra a sua fraqueza. O teu Verbo,
verdade eterna, dominando as partes superiores da tua criação, levanta até si
mesma os que se lhe submetem, enquanto, por outro lado, nas partes inferiores,
construiu para si, como nosso barro 93, uma casa94humilde, por meio da qual
derrubaria de si mesmos aqueles que haviam de ser submetidos e levaria até si,
curando o tumor e alimentando o amor, para que não se afastassem para mais
longe, por causa da confiança em si mesmos, mas que antes se tornassem fracos,
vendo, diante dos seus pés, a divindade, débil, em virtude da participação da
nossa túnica de pele95, e, cansados, se prostrassem diante dela, e ela,
erguendo-se, os levantasse.
85-Cícero, Tusculanas I 38.
86-1 Coríntios 15:52.
87-Romanos 1:20.
88-1 Timóteo 2:5.
89-Romanos 9:5.
90-João 14:6.
91-João 1:14.
92-Colossenses 1:16.
93-Génesis 2:7.
94-Provérbios 9:1.
95-Génesis 3:21.
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