quinta-feira, 28 de agosto de 2014

ENEM 2014 - Cursinho,2 ano e 3 ano

Da tradição à modernidade

 DOSSIÊ TECNOLOGIA, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO

Jean-Jacques Salomon; Francisco Sagasti; Celine Sachs-Jeantet

Algum tipo de ciência sempre existiu em toda sociedade durante todos os períodos da historia humana. Não existe ação, enquanto fenômeno natural ou social, sem certa quantidade de conhecimento racional empírico do mundo físico, vivo e social. Esse conhecimento sempre desempenhou papel importante no desenvolvimento das sociedades, quer nas suas conquistas materiais, quer nos seus crescimentos institucional e cultural. No entanto, foi nas sociedades industriais modernas que a ciência e a tecnologia tornaram-se fator crítico no processo de crescimento econômico e desenvolvimento a longo prazo. Diversas civilizações e sociedades têm ignorado ou simplesmente dado pouca atenção à noção de progresso, apesar de testemunhar certo grau de mudança técnica ocorrida num longo período.
Expectativas sobre possibilidades de melhoria dos padrões de vida referem-se a fenômeno bem mais recente, e apareceram muito lentamente na era pré-industrial. A idéia de progresso surgiu no contexto da civilização judaico-cristã e desenvolveu-se principalmente com a Revolução Científica do século XVII, o Iluminismo do século XVIII e a Revolução Industrial que ainda permanece. Desde então, o crescimento econômico tornou-se — para melhor ou para pior — a base da esperança de todas as sociedades para o futuro, e ciência e tecnologia tornaram-se cada vez mais o instrumento para a realização dessas expectativas. E nesse quadro que as políticas a favor e através de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) tornaram-se cada vez mais indispensáveis para a concepção, elaboração e implementação de uma política mais ampla, e de objetivos políticos. Max Weber considerava que o Estado moderno está definido pela burocracia, de maneira que qualquer processo atual de produção política pode ser definido como burocracia mais ciência: a maior parte das decisões políticas de hoje têm recorrido às disciplinas científicas, tais como métodos, provas, resultados e até mesmo promessas.

A Importância da Ciência e da Tecnologia
A ciência e a tecnologia têm importância de fato e, atualmente, cada vez mais. Isso deveria ser evidente por si só, contudo, em muitos países em desenvolvimento, o fato é pouco valorizado, tanto entre os que tomam as decisões como para o público em geral, a ponto de as pessoas não saberem ou não perceberem os benefícios que uma deliberada e consistente estratégia de desenvolvimento pode extrair dos meios científicos e técnicos. Além disso, o povo freqüentemente subestima o fato de a ciência e a tecnologia só funcionarem satisfatoriamente dentro de ambiente econômico e sócio-político mais amplo, que proporciona uma combinação efetiva de incentivos não-técnicos e dados complementares no processo de inovação. Ciência e tecnologia não são fatores exógenos que determinam a evolução da sociedade independentemente de sua formação histórica, social, política, cultural ou religiosa.
Como enfatizou recente relatório do Conselho Internacional para Estudos da Ciência Política, "mudança tecnológica e inovação não podem ter efeitos socialmente benéficos se o contexto cultural e político não estiver preparado para absorvê-las e incorporá-las, e para atingir as transformações estruturais que serão exigidas — um processo muito mais difícil e complexo que uma mera transferência de recursos (nesse caso, ciência e tecnologia ao invés de capital) dos ricos para os pobres, como uma forma de corrigir as desigualdades. Ciência e tecnologia têm provocado um enorme impacto ao reduzir o peso do trabalho físico e melhorando o bem-estar social. Essas contribuições só se tornaram possíveis através do enorme poder metodológico do pensamento científico, que amplia a habilidade humana para criar e desenvolver alternativas. Entretanto, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia é bem mais do que a aplicação da lógica objetiva. Ele é construído em um consenso social, sobre metas e valores. Ciência e tecnologia somente existem através de seres humanos agindo em certos contextos, e, como tal, não podem ser inteiramente neutras e isentas de valores" (ICSPS,1992).
Inquestionavelmente, o progresso científico e tecnológico tem gerado, a longo prazo, muitos benefícios aos países industrializados e, recentemente, para os países em desenvolvimento. A evidência mais flagrante nos países industrializados dessa ocorrência é a renda per capita ter aumentado quase dez vezes no espaço de dois séculos. Além disso, tal indicativo puramente quantitativo não dá idéia dos benefícios individuais e coletivos que acompanharam esse enorme aumento de renda: vida mais longa, menor mortalidade infantil, erradicação de certas doenças, nível de educação mais alto, meios de comunicação mais rápidos, melhores condições de vida e de trabalho, maior proteção social, maiores oportunidades de lazer etc. Onde quer que as desigualdades persistam, e embora ainda possam ser encontrados grandes (e algumas vezes crescentes) bolsões de pobreza nos paísesricos, o nível geral de progresso material é manifestamente positivo. Tudo isso é mais uma razão para se tentar melhorar a situação corrente da maioria dos países em desenvolvimento, cujas condições são tais que os benefícios do progresso científico e tecnológico não podem contribuir para o seu desenvolvimento de igual maneira, nos mesmos nível e rapidez.
Essa interpretação do progresso técnico — a única objetiva — decorre das cifras escolhidas pelos economistas com o propósito de calcular o crescimento do Produto Interno Bruto e da produtividade. Podem levar a conclusões irrefutáveis a respeito da qualidade e dos padrões de vida em uma abordagem econômica, o que já é resultado decisivo. Essa abordagem, porém, não vai além de fatos quantitativos sobre produção, consumo, semana de trabalho, saúde e higiene, expectativa de vida. Tão logo assumimos visão mais abrangente, o saldo do progresso revela-se mais ambíguo e torna-se um tema de reações e de convicções subjetivas. Nossos indicadores econômicos são quase incapazes de medir o custo social e os prejuízos (por exemplo, para o meio-ambiente) associados ao crescimento econômico e ao progresso técnico. Mas também são incapazes de avaliar todo o novo conhecimento e know-how técnico — seguramente os produtos do progresso — que têm permitido aos seres humanos estender seu conhecimento sobre a Natureza e sobre si próprios, reduzir o nível da superstição e agir mais racionalmente para atingir uma vida melhor. Certamente existem aspectos mais sombrios nessa avaliação da ciência e da tecnologia, desde corrida armamentista e existência de arsenal nuclear capaz de liquidar a humanidade, até as questões ambientais globais resultantes de um processo de industrialização que abala o futuro de toda a Terra. Ninguém pode hoje compartilhar o otimismo positivista do conceito de progresso iluminista: o caminho direto para maiores conhecimento e progresso material não leva necessariamente a caminho menos direto à felicidade e ao progresso moral.
"Se, como o sociólogo Herbert Marcuse ou a escritora Simone de Beauvoir, vemos a tecnologia fundamentalmente como uma forma de escravização humana e destruição, ou se, como Adam Smith, a vemos basicamente como a força libertadora de Prometeu, estamos todos empenhados no seu progresso. Contudo, por mais que o desejemos, não podemos nos furtar ao seu impacto em nosso cotidiano, nem aos dilemas morais, sociais e econômicos com os quais ela nos confronta. Podemos amaldiçoá-la ou bendizê-la, mas não podemos ignorá-la." Foi assim que Christopher Freeman iniciou o seu livro The economics of industrial innovation. Realmente, quer gostemos dela ou não, a decisão final será entre a escolha da pobreza e o caminho para o crescimento. Enquanto Freeman estava preocupado somente com a tecnologia, nós nos preocupamos tanto com a ciência como com a tecnologia.
"Ao rejeitar a ciência moderna e a tecnologia, Simone de Beauvoir c consistente na sua deliberada preferência pela pobreza. Porém, a maioria dos economistas têm tido a tendência de aceitar, como Marshall, que a pobreza éuma das principais causas da degradação de grande parte da humanidade. Sua preocupação com problemas do crescimento econômico surgiu da crença de que a pobreza das massas da Ásia, África e América Latina e a menos severa pobreza da Europa e da América do Norte, seriam um mal evitável que poderia e deveria ser reduzido, c talvez eventualmente eliminado."
Ainda segundo Freeman, "A inovação é importante para o crescimento da riqueza das nações, não apenas no sentido estreito do aumento da prosperidade, mas também no mais fundamental sentido de permitir a realização de coisas que jamais haviam sido possíveis até então. É crucial não apenas para aqueles que desejam acelerar ou sustentar a taxa de crescimento econômico nesse e em outros países, mas também para os que estão horrorizados com a estrita preocupação com a quantidade de bens, e desejam alterar a direção do avanço econômico, ou concentrar-se em melhorar a qualidade de vida. E fundamental para a conservação dos recursos, a longo prazo, e para a melhoria do meio ambiente. A prevenção da maior parte das formas de poluição e a reciclagem econômica dos resíduos são igualmente dependentes do avanço científico e tecnológico."
Citamos detalhadamente Freeman, a quem foi oferecida a primeira cátedra de Ciência Política no mundo, e que dirigiu com grande sucesso a Unidade de Pesquisa em Ciência Política da Universidade de Sussex, não somente para homenagear o seu trabalho pioneiro, mas também porque compartilhamos sua convicção — princípio normativo desta obra como um todo — de que não há substitutos para o pensamento racional. Podemos aprender a fazer melhor emprego da ciência c da tecnologia, mas não podemos escapar delas — a menos, claro, que estejamos preparados para desistir de todas as tentativas de lutarmos contra dificuldades, tensões e desafios do mundo no qual temos de viver.
Freeman acrescenta: " O famoso primeiro capítulo da Riqueza das Nações, de Adam Smith, coloca imediatamente em discussão os aperfeiçoamentos em maquinário e a maneira pela qual a divisão do trabalho promove invenções especializadas. O modelo de Marx da economia capitalista atribui um papel central à inovação técnica dos bens de capital — os burgueses não podem existir sem revolucionar constantemente os meios de produção. Marshall não hesitou em descrever conhecimento como o motor central do progresso na economia."
De Schumpeter a Samuelson, a maioria dos economistas chega hoje à mesma conclusão. A importância central da ciência e da tecnologia para o progresso econômico é também a principal preocupação do livro.

Ciência, Tecnologia e Sociedade
Fatores sociais e culturais — atitudes e crenças ligadas à organização econômica, política e social — influenciam o papel que a ciência e a tecnologia desempenham em uma dada sociedade. A expansão de novos conhecimentos, produtos e processos derivados do progresso científico e tecnológico, por sua vez, transformam estruturas sociais, modos de comportamento e atitudes mentais. O papel da mudança técnica no processo do crescimento econômico é reconhecido por todas as teorias do desenvolvimento. Mas qual é exatamente esse papel? Em particular, qual participação tiveram a ciência e a tecnologia nas transformações econômicas e sociais que acompanharam a Revolução Industrial desde seu início? Responder a essas questões pode não ser feito de forma fácil ou rápida, por exigirem análise sutil, perspectiva histórica de largo espectro e referência a exemplos extraídos de muitas ciências sociais diferentes (Braudel, 1979; Rosemberg, 1982).
Hoje — ainda menos que anteriormente com carvão e aço, depois com fornecimento de eletricidade, petróleo e motor de combustão interna — as maneiras pelas quais a mudança técnica transforma atitudes, instituições e sociedades não podem ser reduzidas a simples relacionamento linear automático, isto é, determinista. Tecnologia é um processo social entre outros: não é uma questão de desenvolvimento técnico de um lado e desenvolvimento social do outro, como se fossem dois mundos ou processos inteiramente diferentes. A sociedade é delineada pela mudança técnica que, por sua vez, é definida pela sociedade. Concebida pelo homem, a tecnologia foge ao seu controle somente na medida que ele deseja que ela o faça. Nesse sentido, a sociedade é definida não tanto por tecnologias que seja capaz de criar, quanto por aquelas escolhidas para empregar e desenvolver em lugar de outras (Salomon, 1992).
De fato, a situação atual e bastante diferente da expansão da mecanização estimulada pelo desenvolvimento das máquinas-ferramentas e pelo motor a vapor do século XIX. A difusão de novas tecnologias (eletrônica, computação, telecomunicações, tanto quanto de novos materiais sintéticos e das biotecnologias) gera ainda maiores disparidades do que aquelas existentes entre os países da Europa no início da Revolução Industrial. Mais ainda, envolve desafios muito maiores com relação aos que as sociedades européias do século XIX tinham para resolver (os quais, por sua vez, eram muito mais pré-industriais do que puramente agrícolas), com pleno sucesso, graças à sua longa preparação em fundamentar sua interpretação dos fenômenos naturais e emprego de técnicas, entre outras coisas, em matemática, experimentação, medição, cálculo e teste de qualidade (Salomon & Lebeau, 1993). Por um lado, a situação geopolítica do mundo atual é mais complexa, com um fluxo de eventos e agentes em constante movimento em escala continental, ampliada pela explosão dos próprios meios de comunicação. Por outro, as mesmas ferramentas (tanto conceptuais como práticas) que nos permitem, ao menos parcialmente, entender o mundo em que.vivemos e manipulá-lo — em larga escala graças ao espetacular progresso da ciência e da tecnologia — tornam-se cada vez mais sofisticadas e, conseqüentemente, difíceis de serem dominadas sem habilidades e qualificações especializadas.
É contra esse quadro geral de crescente complexidade dos problemas, bem como dos métodos, que o choque dasnovas tecnologias tem deixado perplexas as nações, tanto em desenvolvimento como industrializadas. Para as últimas — depois de dificuldades econômicas do início dos anos 80, taxas bem moderadas de crescimento econômico e persistência de desemprego elevado —, o ajuste ao novo sistema técnico agora começando a expandir-se, apresenta problemas não muito diferentes daqueles que deram origem aos vários estágios da mecanização no decorrer do século XIX. Quaisquer que sejam os custos sociais em termos da não necessidade de mão-de-obra e do desemprego, por mais substanciais que sejam os bolsões de pobreza ainda existentes (algumas vezes ainda crescendo, como resultado da crise e do desenvolvimento desigual), estamos lidando com sociedades cujas necessidades básicas estão amplamente satisfeitas; além disso, os recursos disponíveis para treinar e retreinar a força de trabalho são consideráveis. Não é por acaso que estas têm sido denominadas sociedades pós-industriais, caracterizadas por domínio do setor de serviços, rapidíssimo crescimento das atividades ligadas à informação e larga escala de investimentos em educação e pesquisa.
Contrastando, para a maioria das nações em desenvolvimento, as necessidades mais básicas de sobrevivência — alimentação, saúde, moradia e educação - estão longe de terem sido resolvidas, de maneira que coisas consideradas pelos países ricos como essenciais podem parecer aos países mais pobres como exibição de luxo ou apelação da sociedade de consumo. Além disso, enfrentam a dupla pressão do problema populacional, cuja solução parece improvável antes do fim do século, e a questão da dívida, tornada tão dramática que alguns países mal podem arcar com o pagamento das taxas de juros. Contra tudo isso, algumas pessoas questionam o fato de as novas tecnologias serem o que muitos países em desenvolvimento deveriam procurar como alta prioridade a fim de satisfazer suas necessidades reais. E ainda — levando-se em conta tanto a crescente interdependência da economia e a internacionalização do mercado de um lado, e do outro as inegáveis oportunidades para modernizar e apropriar-se do oferecido pelas novas tecnologias — parece inconcebível que qualquer país deva escolher privar-se dos produtos e da infra-estrutura, os quais, cada vez mais, definem osistema nervoso do mundo contemporâneo e determinam seu funcionamento (Johnston & Sasson, 1986). Nessa ligação não podem ser subestimados a relevância e o valor da misturei tecnológica,, isto é, a aplicação de novas tecnologias economicamente dispostas a elevar, modernizar ou desenvolver atividades tradicionais (ou explorar recursos naturais, de outro modo não aproveitados) que provoquem ruptura mínima em atividade sócio-econômica, hábitos e meios de subsistência.
A rápida expansão de uma nova tecnologia não implica por si só rápida mudança social. Outros fatores estão envolvidos, como políticas econômicas, sociais e educacionais, negociações e acordos entre grupos de interesse, costumes enraizados da vida diária e das instituições sociais, valores e tradições da sociedade. Mais uma vez é necessário enfatizar que a ciência e a tecnologia não são variáveis independentes no processo do desenvolvimento, mas partes de contextos humano, econômico, social e cultural configurados pela história. Nada é mais revelador desse ponto de vista do que os estudos de caso da mistura tecnológica, os quais demonstram com exatidão não ser a aplicação de novas tecnologias em setores tradicionais tão somente fato tecnológico; antes, refere-se a fatos institucional, social e político (Bhalla & James, 1988). Esse contexto, acima de tudo, determina as chances de ser aplicado conhecimento científico que atenda às reais necessidades de um país. Nãoé o caso de haver dois sistemas — ciência e tecnologia de um lado e sociedade do outro — unidos um ao outro por alguma fórmula mágica. Ao contrário, ciência e tecnologia existem em determinada sociedade como um sistema mais ou menos capaz de osmose, de assimilação e de inovação — ou de rejeição — conforme as realidades que são simultaneamente materiais, históricas, culturais e políticas.
Tudo considerado, não há inevitabilidade na mudança técnica: nem seu passo nem sua direção são predeterminados (mesmo quando não c possível subestimar-se o poder de certos lobbies industriais ou nacionais na imposição de suas fabricas ou produtos), e o sucesso de uma inovação nunca é certo. A tecnologia influencia a economia e a história; por sua vez, é o produto c a expressão da cultura. As mesmas inovações podem, por conseguinte, produzir resultados diversos em diferentes contextos, ou em diferentes períodos dentro de uma mesma sociedade. A inovação técnica c a própria tecnologia constituem assim um processo social, no qual indivíduos e grupos sempre tomam as decisões determinantes na alocação de recursos escassos, a qual inevitavelmente reflete o sistema de valores predominante (Rosenberg, in Bugliarello & Doner, 1979). Ao mesmo tempo, ciência e tecnologia não são caixas pretas com princípios e efeitos, deixando intactas as estruturas sociais das sociedades que as adotam. Elas não podem ser despachadas como mercadorias: o processo jamais é neutro, direto ou permanente; requer níveis de habilidade e, freqüentemente, também de perseverança, sem os quais constituem ferramenta sem cabo ou caixinha de surpresas sem chave.
É a partir deste angulo que as relações entre ciência, tecnologia e sociedade nos países em desenvolvimento devem ser entendidas. Além de certo nível de recursos, a acumulação de capital nunca é por si só garantia de crescimento. Ao contrário, a organização da sociedade — a qual, por sua vez, determina a organização da produção — é o fator principal que torna possível a um país criar e explorar seus recursos científicos e tecnológicos. Esses fatores definem a extensão em que a ciência e a tecnologia podem operar para iniciar e estimular o processo de desenvolvimento, e não vice-versa. Se a ciência e a tecnologia não estão alienadas desse processo, é porque elas mesmas não podem ser desenvolvidas ou utilizadas de outra maneira, a não ser em determinado contexto econômico-social. O subdesenvolvimento extremo é, nesse sentido, o estágio de desenvolvimento que não pressiona a estrutura social a envolver-se em pesquisa científica e técnica. E, faltando estruturas econômica e social favoráveis, mesmo países considerados acima de tal nível podem achar-se incapazes de tirar vantagens da ciência e da tecnologia. Se há uma lição a ser extraída da história, especialmente da história da ciência, é a de que os caminhos e instituições pelos quais o conhecimento se desenvolve e é transmitido através da sociedade, bem como através das fronteiras culturais, jamais é linear ou mecanicista.

Requisitos Institucionais e Políticos
Primeiramente, pretendemos destacar a importância crucial dos recursos científicos e técnicos para o desenvolvimento social e econômico; em segundo lugar, a variedade de situações enfrentadas pelos países em desenvolvimento, especialmente no que se refere a seu débito em termos de ciência e tecnologia e, daí, o fato de não haver um único modelo para definir e implementar estratégias; em terceiro, os resultados contraditórios, senão desanimadores, atingidos pela economia do desenvolvimento, e o esforço indispensável que deve ser feito para integrar a política de ciência e tecnologia em política mais abrangente para o desenvolvimento econômico e social. Qualquer tentativa de afirmações genéricas corre o risco de falhar na apreensão do que está acontecendo atualmente, por duas razões: as circunstâncias nacionais são muito diferentes para que um único modelo possa incluí-las todas, e ciência e tecnologia são hoje muito complexas para serem tratadas em termos gerais. Essas palavras de alerta aplicam-se igualmente à discussão geral do chamado Terceiro Mundo. E mais ainda no que se refere a inovação técnica: "Não é possível tratar das complexidades da tecnologia, suas inter-relações com outros componentes do sistema social, e suas conseqüências sociais e econômicas, sem uma disposição para mudar de um modo de pensamento altamente agregado para um igualmente desagregado" (Rosenberg, 1976). Em outras palavras, qualquer análise da interação entre organização social e mudança técnica deve necessariamente ser refinada para levar em conta as características de cada país, particularmente seu nível relativo de disponibilidades científicas e tecnológicas, natureza e qualidade dessas disponibilidades (instituições de ensino superior e de treinamento, laboratórios etc.) e seu emprego no quadro das condições econômicas, políticas e sociais específicas do país.
Qualquer que seja o seu ritmo e o seu nível, o desenvolvimento é uma caminhada entre a tradição e a modernidade. Nesse processo dinâmico, indicadores quantitativos são sempre relativos: o desenvolvimento nunca é realizado e alcançado como um todo, nem o processo é mensurável apenas quantitativamente. A decolagem ou a crescente industrialização jamais poderão ser garantia confiável contra o retrocesso, como demonstra o exemplo do Leste Europeu. Além disso, embora os dados disponíveis forneçam pontos de comparação, não estamos lidando com uma escala de valores derivada de único, abrangente e incontestável modelo teórico. A empreitada leva tempo, provoca despesas, requer escolhas a serem feitas e, portanto, necessita de resoluta determinação coletiva; não se trata simplesmente de enfrentar os riscos derivados da mudança, mas de buscar urna perspectiva de longo prazo para orientar a mudança em determinada direção.
Como enfatizou Gunnar Myrdal (1969), a terminologia utilizada pelas ciências sociais não é neutra. Hoje falamos de países em desenvolvimento em vez de países subdesenvolvidos por desejarmos amenizar as realidades de desequilíbrio estrutural e de tensão em vez das chances de superação. A linguagem polida da diplomacia sugere existir curto espaço de tempo separando os países industrializados daqueles que ainda não o são: o necessário para superar essa diferença é adotar a política econômica correta. O termo país em desenvolvimento é ilógico, segundo Myrdal, por denotar a idéia de haver países que não estão em desenvolvimento. Além disso, não indica se um país deseja desenvolver-se ou se esta adotando passos concretos para fomentar o seu desenvolvimento. Nesse sentido, a primeira exigência — não apenas em termos cronológicos, mas acima de tudo de princípios — pode ser resumida nessa determinação de tentar o desenvolvimento, não tanto como visão de rompimento com o passado (ou pelo menos não com todas as tradições mais antigas) mas como aquisição dos meios de modernização. Estes meios são parcial, mas não totalmente econômicos; fatores institucionais, sociais, políticos e culturais também contam. O processo de desenvolvimento é um pacote no qual o sucesso depende de muitos elementos diferentes em combinações que jamais poderão ser determinadas apenas por indicadores econômicos.
A lição mais geral é a de que mudança técnica não transforma sociedades independentemente de outros fatores não relacionados com a tecnologia como tal. A Revolução Industrial testemunhou o início de um novo tipo de crescimento, ligado à sucessão de inovações técnicas, o que acelerou o ritmo da mudança, embora suas origens e desenvolvimento tenham dependido, em grande parte, de fatores não técnicos. Na Europa, a competição capitalista incentivou o desenvolvimento técnico dirigido para o aumento da produtividade do trabalho. Essas alterações ocorreram e tiveram possibilidade de expansão porque as circunstâncias econômicas, institucionais e sociais eram favoráveis. Essas circunstâncias, por sua vez, foram alteradas pelo progresso da ciência e da tecnologia, passando então a influenciar a taxa e a direção das inovações técnicas. O processo foi extremamente complexo, como frisa Landes na conclusão de sua história da Revolução Industrial: "Há uma ampla gama de conexões, diretas e indiretas, apertadas e folgadas, exclusivas e parciais, e cada sociedade, ao se industrializar, desenvolve sua própria combinação de elementos para fazer face às suas tradições, possibilidades e circunstancias. O fato de haver esse jogo de estrutura não implica que não houvesse uma estrutura" (Landes, 1969).
Nesse delicado e incerto jogo de estrutura, que é afetado pelo referenciai histórico e cultural de cada país, os pré-requisitos institucionais e políticos para se fazer bom uso dos recursos científicos e técnicos disponíveis vinculam-se principalmente a esses fatores não econômicos. A crescente interdependência entre as nações e a emergência da economia mundial não aboliram a individualidade das culturas e das sociedades. O trajeto da tradição para a modernidade coloca a mesma questão para todos os países em desenvolvimento, porém estes são os únicos em condições de responder, de acordo com as decisões tomadas por eles mesmos tanto a respeito da ciência e da tecnologia como de tudo o mais. Essa questão tem dois lados: como modernizar sem sacrificar a tradição? Como preservar a tradição sem comprometer a modernização? Mais do que nunca, testemunhando política tumultuada à medida que o final do século XX se aproxima, qualquer país em desenvolvimento deverá ser sensível às implicações dessa dupla questão.

Ler na integra:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141993000100002&script=sci_arttext

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