domingo, 31 de agosto de 2014

Freud e a teoria social

O patológico fornece a visibilidade do que está em jogo nas condutas sociais gerais
Sofrimento: os sujeitos devem estabelecer um compromisso entre suas exigências de satisfação e o que é socialmente permitido
Vladimir Safatle
Freud é um autor fundamental no esforço de constituir um campo de reflexão sobre a modernidade. O recurso a ele foi uma constante em várias correntes de pensamento do século 20 e a razão para tal constância era evidente: longe de se colocar apenas como uma clínica do sofrimento psíquico, a psicanálise freudiana procurou, desde seu início, ser reconhecida também como teoria das produções culturais para desvendar a maneira com que sujeitos mobilizam sistemas de crenças, afetos, desejos e interesses para legitimar modos de integração a vínculos sociopolíticos. Freud afirmava que “mesmo a sociologia, que trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da natureza”.
Partir do patológico sem reduzir o social
Não se trata aqui de reduzir a dimensão do social ao psicológico. Na verdade, esse recurso à psicanálise apenas realizava a intuição do sociólogo alemão Max Weber a respeito da necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos sociais depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta.
Em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber lembrava como a racionalidade econômica do capitalismo dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar os tipos de conduta ligados a um modo de ser que remetia à ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista, e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Sem essa ética internalizada, os sujeitos nunca desenvolveriam disposições para trabalhar, poupar e acumular do modo que o capitalismo exigia. No caso de Freud, essa análise das disposições individuais nascia de uma maneira peculiar. Em vez de partir do que deveria ser normal a todos os sujeitos, Freud partia da análise daqueles que, de certa forma, portavam as marcas do fracasso da razão, daqueles que guiavam suas condutas de maneira “patológica” e “irracional”. No entanto, o que Freud procurava era transformar a compreensão do patológico no modo de acesso ao verdadeiro mecanismo do comportamento normal. O que não poderia ser diferente para alguém que acreditava que a conduta patológica expõe, de maneira ampliada, o que está realmente em jogo no processo de formação das condutas sociais gerais. É dessa forma que devemos interpretar uma metáfora maior de Freud: “Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal”. O patológico é esse cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como normal.
Por exemplo, Freud nunca cansou de lembrar que “um ser humano se torna neurótico por não poder suportar a frustração (Versagung) imposta pela sociedade com seus ideais culturais”, sem que essa impossibilidade o leve ao ponto de negar todo e qualquer interesse por tais ideais. Para assumir tais ideais, os sujeitos devem estabelecer certo compromisso entre suas exigências individuais de satisfação e aquilo que é socialmente permitido. Tal compromisso exige, necessariamente, aceitar certa frustração, submeter-se a certa coerção e conflito. Esse é, para Freud, um traço geral dos processos de socialização. No entanto, os neuróticos vivem tal compromisso como fonte profunda de sofrimento psíquico. Entender as causas de tal sofrimento psíquico nos permite, por outro lado, apreender a verdadeira natureza dos compromissos presentes em todo processo de assunção de ideais, normas e valores sociais. Dessa forma, poderemos partir da frustração patológica para, ao final, encontrar seus traços em todo comportamento normal.
Notemos um dado fundamental aqui. Quando alguém está doente, cremos que sabemos isso porque comparamos sua situação com uma situação normal da qual disporíamos previamente. Ou seja, a doença nos aparece como uma derivação do normal. No entanto, Freud faz praticamente o inverso. Ele parte do sofrimento vivenciado pelo doente que procura amparo clínico. Em vez de simplesmente curá-lo, ele procura inicialmente mostrar como seu sofrimento expõe conflitos e processos gerais na constituição de todo e qualquer indivíduo. Isso lhe permite problematizar uma noção demasiadamente normativa e sublimada de normalidade.
No entanto, não se trata com isso de simplesmente negar a distinção entre normal e patológico. Podemos dizer que, no caso de Freud, temos uma diferença qualitativa fundamental entre normal e patológico. Se é verdade que o patológico permite a visibilidade de processos e conflitos presentes no comportamento normal, é porque o patológico transforma em motivo de quebra aquilo que o comportamento normal é capaz de suportar sem cindir-se e dissociar-se.Por exemplo, a ambivalência entre amor e ódio na relação com o objeto de desejo, assim como a erotização da autoridade, é um traço que encontramos em todo comportamento. Mas é na neurose obsessiva que tal ambivalência e tal processo são vivenciados para produzir necessariamente sintomas, inibições e angústia. Ou seja, há uma diferença qualitativa na vivência de processos estruturalmente semelhantes. Eles ganham visibilidade, como os sulcos do cristal quebrado, porque começam a produzir fenômenos que não produziriam em algo que poderíamos chamar de uma situação normal (e que nada mais é do que a ausência de certos sintomas, inibições e angústias em outras situações patológicas, já que não há sujeitos sem sintomas de sofrimento psíquico).Mas dizer que o patológico é o ponto que fornece a visibilidade do que está em jogo nas condutas sociais gerais significa, necessariamente, dizer que “normal” e “patológico” são categorias que podem ser utilizadas para compreender fatos sociais. Proposição aparentemente temerária, a não ser que mostremos que a verdadeira crítica social pode ser algo como uma “análise de patologias do social”. Talvez essa seja a lição que podemos tirar ao tentar trazer Freud para o domínio da teoria da sociedade.

Ler na integra:http://revistacult.uol.com.br/home/2010/06/freud-e-a-teoria-social/

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